São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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A poesia vital de Lina Bo Bardi

MARCELO FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Romana, nascida em 5 de dezembro de 1914, Lina Bo Bardi teve toda a sua formação no que podemos chamar de era do fascismo. Na infância, como "balila" de Mussolini. Na juventude universitária e como arquiteta recém-formada -durante a guerra-, como membro da resistência comunista. A guerra foi a marca que carregou durante toda a sua vida e de onde tirou, continuamente, forças para derrubar barreiras e reconhecer que a vida está sempre por um fio -portanto, só se deve pensar e fazer aquilo que é imprescindível e vital. Daí, Lina extraiu ao mesmo tempo seu profundo senso objetivo e poético.
Em 1946, casa-se com o marchand, crítico de arte, jornalista e polemista P. M. Bardi e embarca para o Brasil numa viagem de passeio. Lina já conhecera, na escola de arquitetura, os projetos modernos dos arquitetos brasileiros Lúcio Costa, Niemeyer e seu grupo -sobretudo o do Ministério da Educação e Saúde, com a participação de Le Corbusier, e o do conjunto da Pampulha, de Niemeyer. "Era fascinante e novo, livre. Rompia com a rigidez racionalista", dizia ela.
Ao chegar no Rio de Janeiro, o casal Bardi é convidado por Assis Chateaubriand, magnata das comunicações, a ficar no Brasil para criar um museu de arte, que acabou sendo fundado em São Paulo.
Lina fica fascinada com a arquitetura que florescia com liberdade, com a paisagem tropical, o verde, com um país que não tinha ruínas, nem as da guerra nem as da história. Impregnada de entusiasmo, assim refletia sobre um museu no Brasil: "Um recanto de memória? Um túmulo para múmias ilustres? Um depósito ou um arquivo de obras humanas que, feitas pelos homens para os homens, já são obsoletas e devem ser administradas com um sentido de piedade? Nada disso. Os museus novos devem abrir suas portas, deixar entrar o ar puro, a luz".
Sem abrir mão da formação racionalista (defensora ferrenha do movimento moderno), com sua enorme erudição, Lina mergulha no mundo brasileiro para projetar um museu nos trópicos, para um povo novo, mestiço, "sem o peso e as amarras do passado", costumava dizer.
Arte popular
Em 1958, Lina vai para a Bahia, onde tem o grande divisor de águas em sua vida: ela, que já havia se naturalizado brasileira em 1951, torna-se agora brasileiríssima de alma. Foi pioneira ao mergulhar fundo na produção popular dos objetos do dia-a-dia. Redescobre o Brasil para os brasileiros, ao resgatar e trazer a público a produção artesanal, ou pré-artesanal, como fazia questão de diferenciar. Lina via nisso uma condição excepcionalmente favorável ao desenvolvimento de um design autóctone, original, moldado na medida do homem brasileiro para atender suas necessidades.
Em 1964, Lina é obrigada a abandonar a Bahia e os seus sonhos. Responde a um processo nos anos negros do movimento militar. Mas sua arquitetura, sempre, em todos os momentos, seguiu contemplando a arte popular. É arquitetura de ponta, que lança mão da mais avançada tecnologia construtiva, quando usa o concreto pretendido, vencendo grandes vãos, ou o ferro-cimento nas recuperações históricas, e que, ao mesmo tempo, não abre mão da vida cotidiana e do modo de viver de um povo.
Lina sempre se dedicou aos projetos públicos e coletivos. Foi uma opção. Não fez edifícios particulares, bancos etc. Casas, somente para os amigos. Para ela, arquitetura era vida. Vida como relacionamento humano.
Fez arquitetura no sentido lato: do design de objetos, móveis, roupas, às intervenções urbanas, passando pelos museus e pelas cenografias de teatro. Tinha uma visão generalista da arquitetura e a praticava desta maneira. Para ela, o arquiteto é sempre um mestre de vida, como o fora na Idade Média ou no Renascimento. O arquiteto deve vestir a "pele do lobo": ser cozinheiro para projetar uma boa cozinha, ser aluno e professor para projetar uma boa escola, ser ator e espectador para projetar um bom teatro, e assim por diante.
Ao optar pelos projetos coletivos, Lina também escolheu trabalhar com seus colaboradores dentro do canteiro de obras. Montava seu escritório num barraco e ali desenvolvia seu projeto, paralelamente ao andamento da obra.
Experimentava soluções por meio de pequenas amostras "in loco" daquilo que seria construído mais adiante, numa convivência rica e fértil com os engenheiros, mestres-de-obras e operários. Assim foi no Museu de Arte de São Paulo, no Sesc-Fábrica da Pompéia (em São Paulo), na Bahia e na Prefeitura de São Paulo. O detalhamento do projeto, desta maneira, era feito durante e na obra. Pequenos croquis em cores eram feitos para que os operários entendessem, seguidos dos experimentos.
Lina sempre criticou o uso do desenho técnico, baseado nas projeções de Monge, como único instrumento de comunicação entre projeto e obra. "É uma linguagem cifrada" que só serve para engenheiros e arquitetos, e a arquitetura, também na maneira de ser feita, deve romper com as limitações da expressão gráfica e ter uma comunicação prática e ampla. Como a música, a arquitetura deve falar uma língua universal, sem barreiras culturais ou socioeconômicas.
Arquitetura poética
Há uma infinidade de leituras da obra tão rica de Lina. Gostaria de acentuar alguns pontos fundamentais para a sua compreensão.
O primeiro deles é o de "idéia forte". Um projeto só pode nascer de um conceito central forte e consistente, capaz de alimentar todo o seu desenvolvimento. Esta "idéia forte" não é necessariamente técnica nem formal. Sendo os dois ao mesmo tempo, ela é antes de tudo "poética".
Por exemplo, no projeto para o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, Lina trouxe de muito longe a idéia da torre-farol, o farol que guia os navegantes, resgatando assim as navegações portuguesas, responsáveis pelo nosso mapa-múndi atual.
Na Casa do Benin, na Bahia, a referência étnica e cultural ao país (ou à região africana) que mais negros deu ao Brasil é preponderante. Neste projeto, Lina traz o oásis africano com coqueiros, a cachoeira do pai-xangô, a construção em barro e palha e a comida e a bebida africanas.
No Sesc, em São Paulo, há a presença fabril dos contêineres, dos silos e da chaminé -que agora não solta mais fumaça, só flores. Não é mais a fábrica do trabalho opressivo e árduo, mas a fábrica da poesia, do nada fazer, da preguiça.
Todas estas "idéias fortes" foram tomadas como alimento espiritual, que vem antes do projeto formal ou físico. Talvez este seja o verdadeiro fundamento do projeto arquitetônico.
O segundo ponto importante é a superação do formalismo e a introdução ou aceitação da dissonância na arquitetura.
Lina, ao tornar-se profundamente ligada à cultura brasileira, ao tomar a vida como combustível máximo de seu trabalho, abandona e combate fortemente os dogmas e conceitos fechados da arquitetura moderna e principalmente pós-moderna. Mesmo reafirmando sua crença no movimento moderno, ela se filia mais aos sonhos dos arquitetos expressionistas do começo do século do que a Le Corbusier; ao Mies Van Der Rohe europeu do café Silk and Velvet do que ao Van Der Rohe americano das torres de vidro. É filha da organicidade de Gaudi e de Frank Lloyd Wright.
Em seus projetos, Lina abandona a idéia da composição de fachada ou do belo clássico, abandona a preocupação formal. Ela não procurava a beleza e, sim, a poesia, e assim como na poesia, admitia em sua arquitetura as contradições, os acidentes de percurso durante a obra, as contingências. Assim como na música, com sua estrutura -som/silêncio/som- tão próxima da configuração do espaço arquitetônico -cheio/vazio/cheio-, a construção deve incorporar as dissonâncias.
O Masp é um exemplo disso: dois pólos, um sob a terra e outro que flutua. No meio, a tensão do vazio. Acima do chão, a caixa pesada que levita, desafiando a gravidade, e sob a terra, em vez da escuridão, a luz do céu surpreende. Sua arquitetura valoriza os percursos, os caminhos possíveis, o desvendar das surpresas, das contradições que fazem parte do dia-a-dia dos homens. Um museu sem paredes, dissonante.
O terceiro ponto é a idéia de convivência do rigor com a liberdade, tão bem definido no seu conceito de presente histórico. Rigor no trato da arquitetura como ciência e compromisso social. Rigor técnico e objetividade, sem falsificações ou supérfluos injustificáveis do ponto de vista da história. Ao mesmo tempo, "rigor" que não toma a história como camisa-de-força. Toma da história aquilo que serve e vive. O resto, joga fora ou deixa de lado: é "livre".
Ela escreve: "É preciso se libertar das 'amarras', não jogar fora simplesmente o passado e toda sua história, mas considerar o passado como presente histórico, ainda vivo. Diante dele, nossa tarefa é forjar um outro presente, 'verdadeiro', e para isso é necessário não um conhecimento profundo de especialista, mas uma capacidade de entender historicamente o passado, e saber distinguir o que irá servir para novas situações de hoje".
Um quarto ponto a destacar é o da ligação entre arquitetura e teatro. Lina fez teatro durante toda a sua vida. Projetou vários deles, bem como cenografias, e participou da concepção e direção de várias peças. Citava Walter Gropius, ao dizer que, para um arquiteto, a observação do teatro é fundamental. Se a arquitetura é a concretização do espaço onde se desenvolve o comportamento humano, este espaço é também definidor deste ou daquele comportamento, tal como podemos ver de forma clara no teatro. Situações-limite levadas às últimas consequências pelo teatro ajudam o bom observador-arquiteto a projetar os espaços onde a vida se dará.
O último ponto é o do olhar antropológico. Vale arriscar dizer que a antropologia foi a matéria fundamental no fazer arquitetônico de Lina. Uma antropologia intuitiva. Em 15 anos de convívio diário com o trabalho de Lina, pude ouvir histórias e observações suas sobre os mais variados temas, que, seguidamente, acabavam por transparecer em seus projetos. Sempre com muito humor e prazer, estas histórias não eram mais do que as perspicazes observações da vida cotidiana.
No projeto Camurupim, por exemplo -uma vila para os trabalhadores de uma cooperativa que iria se instalar numa das mais bonitas regiões do Brasil, a foz do rio São Francisco-, Lina vai a campo com suas aquarelas e seus lápis para registrar a paisagem em sua caderneta de anotações, para pesquisar e entender o modo de vida das pessoas de um ponto de vista antropológico e sociológico.
Tudo isso, registrado em desenhos, textos, anotações e pequenas histórias, dá impulso a um de seus mais brilhantes e inusitados projetos. A escola, a praça, as ruas, os lotes circulares, as casas e, porque não dizer também, as árvores, tudo é cheio de vida, nos seus menores detalhes -o armário de dormir das crianças, aconchego da vida em comum, as varandas, tudo.
Seu projetar é como o da criança que brinca de fazer cidades, de inventar "mundos".

Marcelo Carvalho Ferraz é arquiteto e diretor-executivo do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi

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