São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
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A salvação neste mundo

RENATO JANINE RIBEIRO

a tese deste "Napoleão" é que o general Bonaparte foi o primeiro "salvador" da França, abrindo assim uma linhagem pródiga em homens providenciais -que passa por seu próprio sobrinho, Napoleão 3º, pelo marechal Pétain e ainda o general De Gaulle. Em circunstâncias adversas, ou seja, diante de conflitos sociais intensos, a burguesia confia seus destinos a uma figura forte, o mais das vezes um militar, que, pelo exercício de um poder despótico, restaura a ordem. Passada a crise, quando o grande homem é tomado por suas idiossincrasias, suas manias pessoais, a classe dominante (que no tempo de Napoleão se constituiu dos "notáveis") irrita-se e acaba descartando o príncipe que se tornou incômodo, e finge esquecer os vínculos que teve com ele.
Para montar essa tese, Tulard escreve um livro com todas as qualidades da história dita factual -relatando o pormenor dos acontecimentos para quem não os conhece e efetuando uma crítica afiada da documentação, no que ela tem de equívoco. Tulard é hoje o maior especialista em Napoleão, e seria difícil contestar o que diz sobre o maior general da história. Contudo, o que falta nessa obra é um estudo mais apurado no rumo que seu subtítulo aponta: como nasce o mito do salvador. A este respeito, tudo o que temos são alguns comentários salpicados aqui e ali.
Como é que Napoleão, que em seus tempos de capitão Bonaparte escrevia textos de forte teor republicano, igualitário, se torna o fiador de um regime baseado na defesa mais completa da propriedade privada (da qual o seu Código Civil, o "Code Napoléon", é a bíblia) e que protege os interesses das classes ricas? O autor mostra o que leva Napoleão a aliar-se às classes conservadoras, bem como a descrer da "canalha". Em 1814 e de novo em 1815, o imperador se recusará a armar os trabalhadores de Paris, que querem defender a pátria da invasão conservadora. Mesmo na agonia do Império, deixa ele claro que a classe à qual se liga é a dos proprietários. Isso está muito bem provado por Tulard.
O problema, porém, reside na construção do mito. As observações de Tulard são preciosas -mas escassas. Napoleão garantiu seu poder com base nos "notáveis", isto é, uma pequena nobreza de extração burguesa que deve boa parte de seu poder ao confisco dos bens efetuado pela Revolução e, além disso, ao Estado centralizado que o imperador instituiu (como diriam alguns) ou reforçou (como diriam Tocqueville e Taine). Para essa classe, ele é o salvador -que a protege tanto de uma restauração Bourbon, que em 1800 provavelmente poria em xeque a nova distribuição das propriedades, quanto de uma radicalização popular, que exigiria divisão mais equitativa dos bens. Evidentemente, esse reflexo de uma nova classe, que apela a um "deus ex-machina" para que a salve dos conflitos sociais, fixa um padrão, que mais tarde Marx chamará, em alusão ao sobrinho desse Napoleão, de "bonapartismo": a busca de um "tertius" que, no impasse da luta de classes, assume um poder aparentemente desmedido e ilimitado, quando, na verdade, o que faz é servir aos interesses daquela mesma classe burguesa, à qual nega os direitos políticos. O modelo é conhecido.
Mas o que falta no livro é desenvolver essa idéia de "salvador" -e, para nós, que bebemos em outra tradição de salvações, a ibérica, isso é da maior importância. Nossa idéia de salvação pode ter a ver, no caso hispano-americano, com o papel relevante dos caudilhos em que se converteram, por conquistarem a independência no campo de batalha, os líderes da guerra contra a Espanha. No caso português, é provável que ela dê continuidade ao modo como Lisboa viveu sua longuíssima decadência, concentrada no trágico episódio de Alcácer-Quíbir, em 1578, com o desaparecimento de d. Sebastião e, por conseguinte, dois anos depois, o jugo espanhol. Ficou, para nossos avós, a esperança na restauração da grandeza pátria, que se depunha em sucessivos clones do rei sumido.
Ora, Napoleão, o caudilho sul-americano ou o rei português fornecem, apenas, a roupagem na qual se investe uma necessidade mais forte, a do mito de um salvador. E que necessidade é esta? Devemos dizer que traduz fortíssima exigência de heteronomia. Nunca será demais insistir em como é difícil esse ideal de autonomia moral que nos últimos séculos se propôs ao Ocidente. Em tempos de crise, ele é a primeira baixa, e o salvador bem encarna essa abdicação das decisões. Daí que uma explicação marxista para o 18 brumário (já o de Napoleão 1º, e não só o de Napoleão 3º, que foi o que Marx estudou) esteja correta. E por isso mesmo deve-se realçar o papel, não de quem conquista o poder, mas daqueles que renunciam a ele. Uma história do povo cansado é mais relevante do que uma do general incansável. No lugar das gestas, das épicas, das sagas, devemos ler a exaustão, a depressão, a renúncia. Em outras palavras, devemos substituir uma história do surgimento das grandes individualidades por uma história da produção do tédio das massas. Modernamente, não há mito do poder sem uma abdicação do povo.
Daí que a história de um mito não se possa confinar apenas nele. É claro que o mito pode ser estudado em sua singularidade: Napoleão, Bolívar, Perón. Inúmeras legendas se acumulam sobre eles: Bolívar teria sido educado ao modo prescrito por Rousseau no "Emílio" (o que é falso); Evita, ao conhecer seu futuro marido, lhe disse "Coronel, obrigada por existir" (o que é certo). Mas o estudo dessas lendas, que pode, como tão bem faz Tomás Eloi Martínez em seus livros pós-modernos sobre Perón, dissolver as fronteiras entre o romance e a história como ciência, só tem sentido contra o quadro das sociedades que nelas acreditaram, que delas fizeram seus mitos de instituição, de legitimação. Ou seja, só faz sentido estudar o nascimento do mito de um salvador quando se pergunta: como nasceu, para um povo, a necessidade de ser salvo? Como, antes de estudarmos a dor do salvador decaído, se deu a profunda decepção que fundou, para o povo, a necessidade de ser salvo?
Aqui, formulo algumas sugestões. É da velha tradição monárquica fazer, do rei, Cristo (como propôs Kantorowicz, para a realeza medieval inglesa) ou Deus (como quis, fundando a doutrina do direito divino dos reis, Jaime 1º da Inglaterra, em fins do século 16). Uma ligação ao divino e ao pai está presente em quase toda realeza. Assim, é evidente que, quando Napoleão -ou Sebastião- surge como salvador, o mito opera sobre uma base antiga, que tem a seu favor a força brutal de sentimentos arcaicos. Mas há uma novidade em Napoleão, que é o que institui o que poderíamos chamar o salvacionismo moderno -este mesmo que tivemos há poucos anos, na figura de um presidente saído do nada e que prometia mundos e fundos.
Trata-se de uma salvação fortemente marcada de anonimato. Seus heróis, ao contrário de d. Sebastião, saem do nada. Sua promessa, por sua vez, se dirige também a homens do nada. Anônimos se fazem um nome: Napoleão, Collor. Anônimos esperam adquirir um nome: os destinatários de suas mensagens. O caráter divino dos antigos poderes, aliás, prometia a salvação só no além, ao passo que numa sociedade de massas a salvação está ao alcance de cada um (veja-se a difusão da "auto-ajuda") e deve realizar-se neste mesmo mundo. E por isso discordo um pouco daqueles que, como Gilberto Velho num artigo curto, que aprecio, vincularam o salvacionismo collorido a um legado sebastianista. O sebastianismo é indissociável da consciência do declínio e investe nos simulacros de um rei desaparecido para pensar menos a salvação individual que a restauração de uma unidade mística, por exemplo, a pátria. O salvacionismo moderno é mais individualista e, por isso mesmo, aberto a sonhos e cenas de ascensão social explícita ou implícita.
Mas, enfim, estas são apenas algumas idéias sobre a salvação neste mundo -aquela que Napoleão terá sido um dos primeiros a pregar e executar, enterrando, poucos anos após a Revolução Francesa, um dos projetos mais intensos de emancipação que o homem foi capaz de gerar.

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