São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
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Grandiloquência e marketing

ARACY AMARAL

sabe-se que uma exposição é transitória. Permanece o catálogo, o registro documental do evento, objeto obrigatório de críticos e pesquisadores. A coleção de catálogos da Bienal de São Paulo é hoje uma preciosidade. Dada a instabilidade sócio-econômica do país, o catálogo não manteve um padrão único ao longo das décadas. Copiou características de outros eventos, engordou, ficou mais ambicioso e espaçoso. Hoje, as casas são compactas, mas os catálogos e livros de arte -apesar das crises- têm porte para estantes que não existem mais. O formato pequeno da 1ª Bienal vigoraria até sua 8ª edição.
Só a 16ª Bienal (1981) optaria pelo catálogo dividido em volumes -três, então- o que dificultou o manejo da documentação, sem que, pelo visto, se tenha analisado tal opção. É da atual gestão a idéia do catálogo graficamente espetaculoso, dos vários volumes de capa dura, gênero "coffee table book", brinde de empresa. Não significa que não sejam belos, mas de luxo desnecessário, e são um desvio de sua função primordial: informação e fonte de consulta -logo, transportável. Falta racionalidade e discrição aos catálogos atuais. Tudo o que os anteriores traziam -textos de curadores, listas de obras, ilustrações- poderia constar, com menos pretensão, nos catálogos das duas últimas Bienais.
Catálogos também podem ser inverídicos, preservar uma apresentação não-real do exibido na mostra. Numa Bienal sobre a desmaterialização da arte, o risco é maior, pois fotos de participações de artistas nem sempre correspondem ao que se viu na Bienal; o catálogo adquire então a aura do museu imaginário de Malraux (vide os casos das instalações do alemão Wolff e da argentina Sacco -esta, uma pálida imagem das enfáticas reproduções do catálogo geral). Obras de muitos artistas, fotografadas em seus espaços originais, diferem da "mise en place" posterior na Bienal.
Jamais o país será bem-administrado se permanecer nossa afirmação pelo desperdício e pelo excesso. Uma belíssima retrospectiva da Bauhaus em Milão, em outubro passado, tinha um catálogo de quase 500 páginas, conciso, com excelentes reproduções de todas as obras e com não mais de 22,5 x 16 cm.
É visível, internacionalmente, o esgotamento dos eventos contemporâneos de artes visuais. Nesta Bienal, raros foram os artistas a prender a atenção como Soto, Gego, Waltércio, Suter, Renzi Mostafa, Arnulf Rainer, Ugo Rondinone, Marianne Heske, Qui Shi-Hua e uns poucos mais, que nem sempre podemos avaliar por não serem de nosso repertório sensorial ou cultural. O Brasil, quase não existe... O destaque ficou com as salas especiais. Aí estavam os artistas que "fazem" a história da arte. Daí porque um dos méritos desta Bienal foi ter trazido de novo Klee, Munch, Lam, Picasso, e revelado ao público daqui a deslumbrante sala de Figari e o trabalho de Twombly.
Entretanto, se o tema era a desmaterialização da arte, por que as salas especiais não fizeram um retrospecto dos grandes iniciadores da arte conceitual, desmaterializada? Não incluíram artistas que, além de LeWitt -um dos astros desta Bienal, como Warhol-, foram pioneiros da tendência? É o caso das ausências de Kosuth, Nauman, Dibbets, Acconci, Burn, Morris, Graham, Venet, Merz etc. (que, aliás, nos afligiram o espírito nos anos 70, quando as galerias "in" de Nova York nos bombardeavam com monótonas exposições de vídeos e imensas pranchas de tabelas, cálculos e textos pseudocientíficos aborrecendo o visitante, que tinha de olhar enormes reproduções como a da "Teoria da Informação").
Se tal não ocorreu, seria porque Picasso, como artista do século, é um monstro e atrai público? É difícil engolir qualquer explicação excêntrica do curador Nelson Aguilar para justificar a ligação de Goya com esse tema. Só se o marketing exigiu. Mas aí é outra discussão.
Nas salas especiais, distanciamo-nos das preocupações do artista contemporâneo, pois não há tempo nas Bienais e Documentas para se fixar em cada obra exposta. Spengler ("A Decadência do Ocidente") escreveu que "todas as obras -não as obras singulares, mas a arte em seu conjunto- são mortais. Chegará um dia em que (...) embora a tela pintada permaneça intacta, terá desaparecido o olho capaz de perceber esta forma de linguagem". É como se já estivéssemos vivenciando este tempo. Conta o conjunto, a sequência -chave também da programação televisiva de hoje, na qual a sucessão de notícias neutraliza horrores, violências, catástrofes ou maravilhas conquistadas.
Antes, o artista se preocupava em selecionar as obras, segundo a qualidade. Hoje, como um decorador, é forçado a solicitar a planta do local, pé direito, metragem quadrada, a fim de não ser tragado pelo espaço ou ver seu trabalho minimizado pelo conteúdo da sala seguinte. Esta postura reflete novas formas de sensibilidade ou a alteração do lugar da arte, pois, a partir dos anos 60, o artista pode ser mais relevante, como personalidade ou atitude, que sua obra (Yoko Ono, Warhol, Gilbert and George).
O próprio artista, frequentemente, não se importa com o teor efêmero de sua obra, que passa a ser descartável como um eletrodoméstico. Afinal, é o mundo em que estamos inseridos e não nos cabe senão resistir. Assim, ao se passear pelos ambientes das megamostras internacionais -onde a grandiloquência dá o tom-, o impacto visual e físico sobrepõe-se à qualidade da obra. Como "o novo" há tempos deixou de chocar, o "êxito" do trabalho vem da execução industrial/tecnológica apurada, quando existe tal vinculação, ou da audácia da violência, dos materiais insólitos, da mera inventividade, da dimensão impactante. "Seja audacioso, faça arte, seja um artista...". Pode soar exagerado mas é um pouco por aí. Porém, sabemos que só uma trajetória constrói um artista.
Assim, a beleza interior do universo de certos artistas, como Díaz (Chile), ou a transparência diáfana de Gego (Venezuela), pouco emergem na batalha pelos 15 minutos de glória numa Bienal. São densos, porém introspectivos, e isto não basta numa grande mostra. Também por seu silêncio e delicadeza, o trabalho de Mira Schendel -que indiquei para representar o Brasil numa Bienal dos anos 70, de Cali, Colômbia- quase não chamou a atenção. Diga-se de passagem, Mira nunca se constituiu em "tríade" com Oiticica e Ligia Clark, conforme insistiu Aguilar no prólogo do catálogo da Bienal. Mira sempre atuou discretamente, em seu canto, como Volpi, e sem qualquer articulação com outros centros. Já a ligação Oiticica/Clark de fato foi marcante para a arte no Rio de Janeiro.
Neste país, o último que fala vira o único que falou. Pois ignora-se logo o que antes se afirmou. Assim, aquele que pertence a uma geração anterior e disse algo antes, sente-se, em face da realidade imediata, desacorçoado ou tomado por preguiça abissal. Por mais banal que seja insistir em nossa ausência de memória, nada se faz para reverter a situação. Alardear pelos meios de comunicação que, quanto à qualidade e à frequência, esta foi "a melhor Bienal de todos os tempos", soa como falácia, se considerarmos, proporcionalmente, a população de São Paulo em 1953 (2ª Bienal) e hoje. É desconhecer sua história. Ou era propaganda para quem "está chegando" e não se interessa por conferir a afirmação.
Para os promotores, tal discurso pode ter sido estratégico. Mas o procedimento não é inocente. Desde as bienais da década passada (1985, 1987), nota-se um anseio legítimo de retomar a grandeza perdida nas tristes bienais dos anos 70 (com exceção da polêmica e única Bienal de Arte da América Latina em 1978 -evento alternativo, em ano par, cujo registro foi um modesto catálogo e dois volumes, em estêncil, de comunicações do seu simpósio).
O lema das Bienais agora é "o maior é melhor" ou "think big", embora se diga que não há dinheiro na praça, que o mercado de arte está parado (?), que não há público para artes visuais -a cada dia mais restritas aos iniciados. Esta é a contradição com que novamente nos deparamos: esta Bienal, em particular, foi evento para uma pequena elite, mobilizando com força impressionante os "mass media". Como explicar o porte de promoções envolvendo socialites/empresários? O meio intelectual e cultural ficou de longe. Até se prescindiu dele, como de algo incômodo, pois poderia levantar questões que importunassem o desejado ar de festa. A resposta talvez seja a entrada maciça da iniciativa privada a demandar "retorno", palavra-chave para investidores. Então, quis-se mostrar como popular e demandado um evento impossível de sê-lo. Não existindo história da arte no 2º grau, escolares vão à Bienal sem preparo prévio, como se vai ao Salão do Automóvel. Sabemos que o seu aproveitamento é quase nulo, apesar dos esforços da monitoria da Bienal através dos anos, e de querermos a continuidade de um evento que anima o meio cultural brasileiro.
A 2ª Bienal de São Paulo não poderá mais ser superada. Fonte evidente de consulta, o curador Aguilar terá buscado reeditá-la. Seu louvável esforço nos trouxe de novo Klee, Munch, Picasso. Porém, em 1953-54, tivemos também Mondrian, Ensor, Kokoschka, Boccioni, Balla, Carrà e outros, representando o futurismo, a grande sala de Calder, pelos EUA, e o cubismo, pela França. Como realizar uma exposição deste porte no Brasil de hoje?
Era um tempo de contatos pessoais menos complicados e de personalismos como o de dona Yolanda Penteado, visitando a Europa e expressando, sem curadores, as vontades de Ciccilo Matarazzo, com a ajuda em cada país dos embaixadores do Brasil, graças a Getúlio Vargas. Para a edição seguinte, da 3ª Bienal, ainda viriam Max Beckmann, pela Alemanha, e Léger, pela França, Kubin, Sutherland e os três gigantes do muralismo mexicano, ao lado de Tamayo, que os desafiou com seu talento.
A série das primeiras Bienais, pelo que nos trouxeram críticos como Read, Sandberg, Alfred Barr Jr., Grote e Pallucchini -formadores de críticos e curadores em seus países- nos ensina modéstia. Assim, na 4ª Bienal, teríamos Morandi, Magritte, Pollock e a sala da Bauhaus, pela Alemanha. Por que se falar agora de "melhor Bienal de todos os tempos"? A memória está aí, para quem quiser ver os arquivos ou consultar o livro de Leonor Amarante, enquanto não nos chega o estudo de Ivo Mesquita sobre as Bienais de São Paulo.

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