São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
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João do Vale "Pisa na Fulô"

JOSÉ SARNEY

Dois nomes ficarão eternos na música popular brasileira, grande contribuição ao país pela cultura nordestina: Luís Gonzaga e João do Vale. Gonzaga, das secas, o baião, o xaxado, o forró, jeito do cangaço e aridez da alma da caatinga.
A mensagem do infortúnio ("Asa Branca"), da tristeza do exílio ("Riacho do Navio"), no modo brejeiro do sertão ("O Xote das Meninas").
João do Vale, das áreas úmidas do Maranhão, cantou o Nordeste molhado, vem outro tipo de poesia, as coisas simples ("Rosa Amarela"), a picardia ("Peba na Pimenta, Pisa na Fulô"), o testemunho da vida e a revolta e mensagem política com a força da terra ("A Voz do Povo", "Carcará", "Minha História").
Gonzaga é o rei, cantor e "show man", tem a alma do povo; João do Vale é o poeta, de voz fraca, de mensagens transfiguradas. Gonzaga está no altar de Deus, João é santo de devoção.
Esse João do Vale merece meditação. Vem da Lagoa da Onça, Pedreiras, município mais pobre do que as cabras, desde menino traz a música no gingado do corpo, alma toda musicalidade, não pensa senão em compor e cantar.
Foge da roça, é menino de rua, é ajudante de caminhão em Teresina, é retirante em Fortaleza, é biscateiro na Bahia, é garimpeiro em Minas, é pedreiro no Rio de Janeiro.
De dia amassa barro, de noite canta. Percorre as rádios para programas de calouro, frequenta boates e até joga futebol (foi reserva de Zizinho, no Bangu). Era um boêmio de copo e de alma.
"João, você sabe ler?" "Ler eu sei. Não sei é escrever: os pinguinhos me atrapalham."
Estava paralítico havia oito anos, com dificuldade de falar, pobre e mais pobre ainda do que quando nasceu.
"Zé (era assim que me chamava), quero voltar para Pedreiras do Maranhão. Mesmo se eu morrer na China, quero ser enterrado em Pedreiras." (Não sei por que diabo ele foi pensar na China.)
Estava nos últimos anos perdido dentro do seu corpo. Não era a sua alma atribulada que carregava o corpo, era o corpo atribulado, paralítico e deformado que carregava sua alma. A mesma de sempre.
"Nunca deixei de ser compositor. Não me arrependo de nada. Quis ser compositor. Sou assim e vou morrer assim. Quero viver e morrer na minha terra. Sou feliz e pronto. Moro no Rio, mas vim para Pedreiras descansar eternamente..." (Foi sua última entrevista.)
Éramos amigos. Na Presidência, me telefona: "Zé, tem uma professora belga, loira bonita de danar, que veio ao Brasil me estudar. Eu estou estudando ela. Agora quer voltar. Você manda uma passagem para ela passar uns dias nas Europas. Ida e volta, pois o estudo não acabou.".
João do Vale, olhos brilhantes e matreiros, dentro daquela pele preta como as noites mais lindas do Maranhão, inteligência e sagacidade, talento e carne de música, alma de cantador (Pedreiras, 1933 - S. Luís, 1996).

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