São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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O arquivista das sombras

GOFFREDO TELLES NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É o que ele era. Um arquivista de sombras. Nesta Bagdá mental brasileira, o bom mesmo agora seria falar com ele, tão melhor do que escrever sobre ele. Mas isso só nos filmes ou nos sonhos.
A.LUZ.IN.AÇÃO: alucinação. Nove de setembro, altas horas. Alguns já se foram e os outros ainda não chegaram. Fiquei só, velando o corpo dele. Pouso a mão aberta no seu peito e sinto o coração batendo forte através do tweed. Um táxi, ele está vivo! Nada responde, ninguém. Devagar, vou descobrindo que as batidas não vêm do Paulo, mas do meu relógio de pulso.
Ano de 1977. Morria em São Paulo o ensaísta-professor-ficcionista Paulo Emilio Salles Gomes. Primo Carbonari garante que filmou "a tristeza toda", mas está meio difícil achar a lata com a fita. Última Cena no cemitério da Consolação. O Cinema Novo de novo em PÉ. Gente chorando, sussurros, perplexidade e a pá deslizando no cimento fresco. Gustavo Dahl cobre a cara, e a morte ali, sem máscara. Paulo-movimento transformando-se em Paulo-monumento. Parecia um pesadelo, perdíamos o amigo querido e ganhávamos um mito de mil quilos. Mas Glauber Rocha nos acorda desferindo três tapinhas no tampo do caixão, "tamos aí, bicho!". Devo a Glauber esse gesto terno, exorcizando a contagiosa retórica da morte. Inevitável a lembrança do belo documentário "Di-Glauber", que o cineasta baiano filmou no velório do pintor Di Cavalcanti.
"Os bárbaros plantam os seus mortos", escreveu Glauber um dia. Enquanto Primo Carbonari continua procurando a tal lata do enterro na sua cinemateca de Babel, esperamos rever o mais breve possível esse "Di-Glauber" -música de Pixinguinha, versos de Augusto dos Anjos-, que continua censurado por não sei mais quem. Corta, não quero vermes, quero ver-me.
Paulo Emilio: "É perda de tempo imaginar o que teria acontecido se Santos Dumont tivesse recebido a missão de fabricar aeroplanos nos anos 20. Mas o fato de Ruy Barbosa não ter podido se eleger presidente da República nos parece revelador, porque confirma a idéia de que a função desses homens não era mesmo a de resolver problemas nacionais, mas de serem simplesmente admirados. Eles não eram messias, eram astros. Se nos fosse permitido inventar uma expressão útil, eles poderiam ser definidos como Bodes Exultórios".
Vesgo e charmoso
Na sua juventude Paulo era vesgo e charmoso, isso na opinião das meninas universitárias que avançavam e recuavam. Amor e medo. Foi preso aos 19 anos. Da sua cela ele podia ver de longe a Pagu detrás das grades do presídio político do Paraíso. No dia 20 de fevereiro de 1937, o "Diário da Noite" publica em manchete, primeira página: "Fugiram do Presídio do Paraizo, depois de perfurar um túnel de nove metros, 17 detidos que escaparam na Quarta-Feira de Cinzas". Pânico na família, Paulo Emilio está entre os foragidos. O túnel que o levou da Terceira para a Quarta Internacional acabou desembocando em Paris.
Paulo Emilio na Europa fica amigo de Henri Langlois e Marie Merson, fundadores da Cinemateca Francesa e, depois, do Museu do Cinema. Comunista exilado, ele descobre o cinema, "esse mesmo cinema que, como arte plebéia, seria a expressão artística da Revolução: arte generosa, antiburguesa". Ou, como diria o nosso presidente do Mundo, Almeida Salles, uma arte ecumênica. Descobre-se então que o cinema estaria para a revolução assim como o cristianismo para a Igreja Católica. Ilusão-desilusão. Por temperamento e devido ao seu íntimo contato com a psicanálise, Paulo Emilio dá a volta por cima -via cinema, via amor, via Brasil.
Foi ele um dos primeiros intelectuais brasileiros a se dar conta da dura realidade stalinista. O Front Populaire deu no que deu, e a atitude dos partidos comunistas durante a Guerra Civil Espanhola causa espanto no jovem revolucionário que Oswald de Andrade chamaria de "piolho da revolução". Aquele mesmo Oswald de Andrade que amou a menina que Paulo via detrás das grades, Patricia Galvão.
Nova geração
Ainda na Europa, Paulo Emilio questiona a política da Terceira Internacional sem renegar, no entanto, a revolução brasileira. Em estilo telegráfico, o seu estilo: nasce a revista "Clima", com Antonio Candido, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, Alfredo Mesquita e Lourival Gomes Machado, aqueles "chatoboys" -assim costumava brincar Oswald de Andrade.
Paulo Emilio participa da Plataforma da Nova Geração. Grupo Radical de Ação Popular, 1942. Partido Socialista Brasileiro, 1947. Paulo também gostava de brincar, inclusive com ele mesmo. Sempre um homem sério, mas sem pompas. Vejo hoje que ele era a melhor personagem de todas aquelas que criticou e inventou. Essa extraordinária agilidade histriônica, o seu humor, nos fazia vislumbrar, a partir de miniaturas, toda uma circunstância histórica. Era ele complacente com a mediocridade? Com a burrice nacional? Sim, era complacente, até generoso. Mas essa generosidade revelava na sua natureza mais profunda uma aguda confiança-esperança na força da inteligência: acreditava no "poder da inteligência e não na inteligência do poder". Ou melhor, ele confiava na inteligência, mas nem tanto no poder.
Eis que Paulo Emilio descobre a miséria dentro do seu corpo. Foi como se ele se contaminasse com o seu próprio país enfermo: as doenças do subdesenvolvimento. Há um encontro trágico do seu corpo com o corpo social que ele tanto buscou. A constatação de sua fragilidade, o sentimento de que o corpo estava falhando -essa a descoberta quase insuportável. Ele fica em silêncio.
"Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento". Sua própria trajetória. A paciente confiança na revolução e a obstinada esperança na descoberta de nós mesmos. Voltando ao Brasil ele lança o olhar para um horizonte mais próximo: cinema brasileiro (todo o cinema brasileiro), os amigos, os livros. E a espantosa descoberta do prazer de escrever ficção, "Três Mulheres de Três PPPs".
Território dos gatos
O francês Gilles Deleuze dizia que a montagem é uma imagem do tempo. Morei com Paulo e minha mãe, anos 60. O apartamento, rua Sabará, 402, era pequeno: sala, dois quartos, cozinha, banheiro e o território dos gatos. Pouco espaço e grandes polêmicas. A sala frequentemente pegava fogo porque ali era o ringue das lutas do Cinema Novo em ascensão. Isso, sem falar nos choques do silêncio versus rock: Paulo na sua poltrona curtindo Eça de Queiroz, e eu curtindo Hendrix, "Band of Gipsys".
No amanhecer vinha a calma. Minha mãe ia para a sua aula de ginástica, Paulo folheava rapidamente os jornais do dia. Eu, ainda sonado, tomava café. Saíamos os dois para a Cidade Universitária da USP. Na sala de aula vazia começávamos a rabiscar no grande quadro negro as palavras que nos vinham à cabeça. Começava o jogo. Isa, Pablito, Rogerio, Wagner -enfim, os alunos- iam chegando, sonados como eu. Lá na frente, o quadro negro já repleto de palavras flutuantes, ainda desconexas. Assim: gato, árvore, revolução, Rio, Humberto Mauro, miséria, sonho, São Francisco de Assis, subdesenvolvimento, Capitu, censura...
No começo era o caos. Então Paulo Emilio ia desembrulhando a conversa, não necessariamente sobre cinema. O papo, às vezes lúcido, outras vezes delirante, fluía solto. Magia: aquelas palavras de giz, suspensas e desamparadas, iam aos poucos entrando em combustão, como que movidas pelas nossas vozes, orbitando como galáxias. Repulsão e atração. Mobilizadas, elas ganhavam sentido. Psicanálise, cabala, alquimia, sei lá! Palavras cruzadas. Os surrealistas chamariam esse método de Cadáver Esquisito. Talvez os psicanalistas mencionassem as tais associações livres. O certo é que no final da manhã tínhamos diante de nós uma galáxia de giz.
Consta que Deus criou o homem a partir do barro. Naquela universidade tão pobre, sem equipamentos, sem negativos, Paulo Emilio criava todas as segundas-feiras a invenção de um cinema. "Invento, mas invento sempre com a secreta esperança de estar inventando certo."

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