São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Uma aventura cinematográfica

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

A audaciosa fuga de 17 presos do Presídio do Paraíso, na madrugada de 10 de fevereiro de 1937, uma quarta-feira de cinzas, é um dos episódios mais espetaculares do período de repressão política que se seguiu à tentativa de golpe comunista, em novembro de 35.
Durante os 16 meses que separam a chamada Intentona Comunista da fuga do Paraíso, as prisões do país ficaram lotadas de militantes de esquerda -comunistas de carteirinha, trotskistas, anarquistas ou apenas simpatizantes.
Em São Paulo, os presos políticos foram encaminhados a duas cadeias improvisadas: o Presídio Maria Zélia, numa antiga fábrica, no Belém (zona leste), e o Presídio do Paraíso, num casarão residencial, na rua do Paraíso (zona sul).
Ativo desde 1932, o Presídio do Paraíso "hospedou" a partir de 35 as principais lideranças da esquerda, como o escritor Caio Prado Júnior e o general Miguel Costa.
Paulo Emilio integrava o grupo de militantes do segundo escalão, presos em meio ao "arrastão".
Todos os relatos sobre a fuga coincidem num ponto: a facilidade com que os presos escaparam por um túnel de cerca de dez metros, escavado -aí variam as versões- ao longo de um período entre duas semanas e dois meses.
Durante o período de escavação, os presos primeiro tentaram jogar a terra recolhida na privada, causando o entupimento do sistema de esgoto do presídio.
O crítico Décio de Almeida Prado se recorda que Paulo Emilio lhe contava essa história às gargalhadas: "O pessoal tirava a terra e jogava na privada. Entupiu. Aí veio o engenheiro da prefeitura e disse: 'Tá vendo, eu sempre disse que havia terra na água de São Paulo. Agora, vocês estão vendo' ".
Os fugitivos vestiam roupas normais por baixo dos pijamas da prisão. Ao saírem do túnel, nos fundos do presídio, tiveram que pular um muro, caindo num quintal de uma casa da rua Vergueiro. Paulo Emilio, atrapalhado, caiu sobre um galinheiro.
A rotina dos presos no Paraíso era relativamente tranquila, conta um dos fugitivos, Helio Morato Krahenbuhl, hoje com 80 anos.
"Não chamaria o lugar em que ficávamos de celas. Eram simplesmente quartos, abertos, tranquilos, com beliches. Só havia grades para o lado de fora. Era bastante cômodo", diz ele.
As lembranças de Krahenbuhl coincidem com as recordações do jornalista Noé Gertel, hoje com 82 anos, que passou cerca de 15 dias preso no Paraíso, em 1932. "O Presídio do Paraíso não era uma cadeia digna de um comunista. Era moleza", lembra, rindo.
Gertel foi testemunha ativa dos passos iniciais de Paulo Emilio na política, nos primeiros anos da década de 30. Junto com outros estudantes comunistas, entre os quais o depois médico e escritor Eduardo Maffei, Gertel organizou em São Paulo uma seção do Movimento Estudantil da Luta Contra a Guerra Imperialista e o Fascismo.
Paulo Emilio não apenas participou das reuniões do comitê, como sediou algumas em sua casa, na rua Veiga Filho, em Higienópolis. "Uma vez, ele me deu um terno, muito bonito, azul, com listras, porque eu estava muito mal vestido", diz Gertel.
A relação de Paulo Emilio com os integrantes do comitê estudantil não devia ser totalmente pacífica, a julgar por alguns relatos deixados por Eduardo Maffei (1912-1990).
"Em 1933, era eu um dos dirigentes da esquerda estudantil em São Paulo. Soubemos que certo moço, gente bem, das bandas de Higienópolis, organizava um grupo de jovens aos quais ministrava um bizarro esquerdismo", escreveu Maffei na Folha em 1979.
"Rabugento"
O biógrafo de Paulo Emilio, o pesquisador José Inácio de Melo Souza, chama Maffei de "rabugento", ao comentar os relatos do escritor a respeito de Paulo Emilio.
Para Melo Souza, a divergência de Paulo Emilio com os estudantes comunistas revela, já em 1934, que o crítico não aceitava as ortodoxias e já manifestava sua vocação pela independência política.
Embora nunca tenha se filiado ao PC, Paulo Emilio era classificado como comunista pelos agentes da polícia política que acompanhavam a agitação estudantil na primeira metade da década de 30.
Teatro na prisão
Paulo Emilio ficou preso no Paraíso entre dezembro de 35 e maio de 36. Naquele mês, o preso foi transferido para o Presídio Maria Zélia, uma prisão maior, com cerca de 400 presos políticos, instalada de forma improvisada no local onde antes havia uma fábrica têxtil, no bairro do Belém.
A agitação política no Maria Zélia era ainda maior que no Paraíso. "Foi uma escola para mim, em muitos sentidos", diz Helio Krahenbuhl, que também foi transferido do Paraíso para o Maria Zélia.
O presídio foi transformado pelos presos políticos na "Universidade Popular Maria Zélia". Eles podiam fazer cursos variados, dados pelos próprios presos, de economia, política e idiomas. Também eram submetidos a uma saudável rotina de exercícios físicos.
Nesse ambiente, Paulo Emilio criou o "Teatro Popular Maria Zélia" e escreveu "Destinos", uma peça em três atos, que fez fama entre os presos políticos da época.
Sobre a peça, o crítico Décio de Almeida Prado, amigo de Paulo Emilio, escreveu, em 1985, nos "Cadernos Cemap": "Seria injusto encarar literariamente uma peça concebida em parte como passatempo de prisão e em parte como arma de propaganda política, entendida não no sentido de aliciamento -todos os seus espectadores já estavam certamente aliciados de antemão-, mas no de manter alto o que em linguagem militar se chama moral da tropa".
A peça narra os conflitos entre dois irmãos burgueses, o estudante viciado em cocaína Álvaro e o estudante comunista Carlos.
Paulo Emilio não apenas escreveu e dirigiu a peça, como interpretou o papel de Álvaro. O sucesso foi tão grande que, como "prêmio", o texto da peça foi confiscado e anexado ao seu processo.
Em sua longa correspondência com Décio de Almeida Prado, citada por José Inácio de Melo Souza em sua biografia, Paulo Emilio escreve, com orgulho: "E se eu for processado, creio que (a peça) chegará aos tribunais. Só temo a inveja do Flávio de Carvalho..."
No final de julho de 36, em consequência do seu "sucesso" como autor teatral, Paulo Emilio voltou a ser transferido para o Paraíso.
Censor convertido
Toda a correspondência enviada e recebida pelos presos políticos, além dos livros e jornais recebidos por eles, era submetida a uma censura prévia. Raramente, alguma coisa era proibida de circular.
Décio de Almeida Prado disse à Folha que Paulo Emilio lhe contou, certa vez, que um dos censores, de tanto ler material de esquerda, acabou se convertendo à causa dos presos políticos.
Helio Krahenbuhl, sem que lhe fosse perguntado nada a respeito, também relatou a mesma história à Folha. Ele se lembra claramente que um dos censores do Paraíso acabou seduzido pela correspondência dos comunistas.
Krahenbuhl acrescenta um detalhe à história: o censor que se converteu foi o então estudante de direito Wilson Martins -hoje governador do Mato Grosso do Sul.
Nascido em Campo Grande, em 1917, Martins se graduou, em 1939, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Tinha 18 ou 19 anos na época da história narrada por Krahenbuhl.
Procurado pela Folha por uma semana, o governador Wilson Martins não atendeu a reportagem. O seu assessor de imprensa, Valdemar de Souza, contactado quatro vezes entre os dias 4 e 10 de dezembro, disse que transmitiria a Martins o pedido de entrevista.
Fuga e recaptura
Um episódio pouco claro a respeito desse período na vida de Paulo Emilio é o que ocorreu entre a sua fuga do Paraíso e a viagem a Paris, três meses depois.
Paulo Emilio passou pelo menos um mês foragido, em três endereços diferentes -o último, a casa de um amigo da turma de jogar pôquer, Renato Loureiro.
Décio de Almeida Prado diz que o pai de Paulo Emilio teria feito um acordo com a polícia, pelo qual o filho se apresentaria às autoridades e seria libertado em seguida.
Melo Souza registra que a polícia investigou por onde andava Paulo Emilio e o capturou na casa de Renato Loureiro. Foi capturado, mas não voltou ao Paraíso.
No dia 22 de maio de 37, embarca num navio em direção a Paris.

A seguir, a relação completa dos presos que fugiram do Presídio do Paraíso, no dia 10 de fevereiro de 1937, segundo o texto de José Inácio de Melo Souza: Paulo Emilio Salles Gomes, Victor de Azevedo Pinheiro, Augusto de Lucas da Luz, Arthur Heládio Neves, Hélio Morato Krahenbuhl, Alexandre Wainstein, Olavo Lopes, Brasílio José de Paula, Fuad de Melo, Deusdedit Gomes, Benedito de Almeida, Issa Maluf, João Mateus, Natalino Rodrigues, José Ferreira de Carvalho, Jorge Rafull e João del Osso ou de Losso.

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