São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 1996
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Intervenção foi feita para durar 90 dias

SILVANA QUAGLIO
DA REPORTAGEM LOCAL

O Banco Central assumiu o Banespa há dois anos certo de que ficaria ali por apenas 90 dias.
A expectativa do governo federal de resolver rapidamente a crise do banco, então com um rombo de R$ 9 bilhões, começou a se frustrar logo no dia da intervenção, em 30 de dezembro de 94.
Mário Covas (PSDB), então governador eleito de São Paulo, deixou claro que não abriria mão do banco facilmente.
Covas já sabia que a situação do Banespa era crítica desde novembro de 94. Mas não contava com a intervenção.
No dia 29 de dezembro, foi procurado por Pérsio Arida, então presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mas já indicado para o BC.
O futuro governador já esperava o contato e conhecia o tema, havia sido avisado por Fernando Henrique Cardoso, eleito presidente.
Arida tinha um recado de Brasília: a equipe econômica estudava intervir no Banespa. Mas deu a entender que havia espaço para conversa. Foi marcada uma reunião para o dia seguinte, em São Paulo.
Covas reconhecia que a intervenção podia até ser necessária, mas não achava o momento politicamente adequado. Queria administrar o Banespa. Achava que tiraria o banco do atoleiro. "Quem tem problema é o Estado, que deve para o banco", dizia.
Traição
Brasília já havia tomado a decisão. Arida chegou ao encontro com uma carta assinada pelo governador eleito do Rio, Marcello Alencar (PSDB), pedindo a intervenção no Banerj.
A orientação era para Covas fazer um documento semelhante. O futuro governador sentiu-se traído e não concordou. Exigiu que o BC explicasse, formalmente, as razões da intervenção.
O tratamento do governo federal irritou Covas. Estava disposto a debater o assunto com o presidente eleito. Recebeu o fato consumado e deveria tratar com um funcionário de segundo escalão.
Para acalmar o governador oficializou-se, em Brasília, a versão de que a intervenção, às vésperas da posse, teve a intenção de protegê-lo. Seria pior Covas assumir o governo e perder o banco depois. Poderia ser visto como o culpado.
Na realidade, para FHC e sua equipe, que tinham como meta privatizar os bancos estaduais, o momento era aquele. Banespa e Banerj seriam os exemplos.
A negociação do Banespa esbarraria em pontos de vista diferentes. O governo federal entrou no banco para tirar do Estado um potencial gerador de déficit público.
Já o governo estadual queria se livrar da pior parte da dívida do Estado (junto aos bancos estaduais e em títulos vendidos no mercado): quase R$ 44 bilhões, hoje. Isso, sem abrir mão do Banespa.
Essa divergência transformou os 90 dias previstos em mais de 700 dias. Por enquanto. E os juros ampliaram o rombo de R$ 9 bilhões para mais de R$ 20 bilhões.
O primeiro trimestre de 95 serviu para que os técnicos do BC, que ocupam a diretoria do Banespa, fizessem um primeiro relatório.
O banco poderia ser saneado e depois devolvido a São Paulo. Ou ter seu controle transferido para o BC, a chamada federalização. A liquidação, considerada muito traumática, foi descartada.
Malan e Arida queriam livrar o Banespa da dívida e privatizá-lo. O período foi tenso. Numa audiência na Fazenda, o governador foi destratado por Malan e chegou a reclamar com FHC.
Em março, Arida apresentou a Covas uma proposta embrionária. As dívidas do Estado seriam roladas por 30 anos a juros de 6% ao ano, mais a variação cambial.
O governo paulista deveria entregar o Banespa e a Nossa Caixa para privatização.
Na reunião, o governador manteve a compostura, mas ficou indignado. Custava a acreditar que a proposta fosse realmente séria.
Em março, os interventores do Banespa levaram ao BC uma carta com pedido de demissão coletiva. Já certos de que os 90 dias eram uma ficção, alertavam para os danos que o banco sofria com a demora nas negociações.
Para evitar que o assunto desgastasse ainda mais a relação entre Covas e o governo federal, também em março foi escolhido um mediador. O advogado Ary Oswaldo Mattos Filho, de confiança de Covas e com bom trânsito em Brasília, assumiu a missão.
As partes passaram a se reunir regularmente para tentar encontrar uma solução para a crise. Negociavam, pela União, Arida e Alkimar Moura (diretor do BC). Pelo Estado, Yoshiaki Nakano, secretário da Fazenda, e Fernando Dall'Acqua (adjunto de Nakano).
As discussões ocorriam em São Paulo: na sede regional do BC e nas casas de Arida e Ary Oswaldo.
Covas era informado sobre as conversas em reuniões que fazia com sua equipe aos finais de semana, no Palácio dos Bandeirantes.
Detestava ver o assunto tratado pelos jornais. Sempre que isso ocorria, via na informação um recado, às vezes uma ameaça do BC. Covas temia que especulações dificultassem ainda mais o processo.
Após três meses de trabalho, Ary Oswaldo propôs a pulverização do controle acionário do Banespa, que passaria a ser banco público, sem ingerência política. Faltavam apenas retoques à proposta quando Arida deixou o BC, em 31 de maio. A saída havia sido acertada com FHC em março.
Um dia antes de formalizar a demissão, Arida informou o ato ao governador paulista. Disse que seu sucessor seria Gustavo Loyola e que o acordo seria mantido.
Covas chegou a comemorar o acordo com FHC e José Serra, então ministro do Planejamento, no apartamento do presidente em São Paulo. Mas a festa durou pouco.
No dia 7 de julho, após a primeira reunião entre Loyola e Covas no Bandeirantes, informou-se que as negociações continuavam.
Não era bem assim. Elas voltavam à estaca zero. Loyola, que não queria apenas ratificar uma negociação da qual não participara, fincou pé na idéia de privatização.
Vendo sua proposta enterrada, Ary Oswaldo afastou-se. Cansado de esperar por uma solução, o presidente do conselho interventor do Banespa, Altino Cunha, demitiu-se. Ary Oswaldo foi substituído pelo economista Michael Zeitlin, amigo de Covas. Para o lugar de Cunha foi outro funcionário do BC, Antônio Carlos Feitosa.
A temperatura esquentou ainda mais em agosto e acabou por produzir uma estranha aliança entre Covas e o ex-governador Orestes Quércia. O BC determinou a publicação do balanço do Banespa de 94, acusando prejuízo no banco.
A ordem era dar por perdido o crédito que o Banespa tinha a receber do Tesouro paulista. Isso oficializaria para o mercado o que todos sabiam: o Banespa estava tecnicamente quebrado.
A publicação do balanço só não aconteceu até hoje porque Quércia, apontado por Covas como o responsável pelas mazelas do Banespa, entrou na Justiça.
Percebendo a gravidade do impasse, FHC determinou que o comando das negociações passasse do BC para a Fazenda -Loyola acompanharia, mas perdera as rédeas do processo. Enquanto isso, a dívida do Estado com o Banespa crescia R$ 500 milhões por mês.
"Isso vai bater aqui"
O sistema financeiro passava por maus bocados. Estourou o escândalo do Banco Econômico. Surgiram boatos sobre o Nacional.
Covas temia que o Banespa fosse o próximo. "Isso vai bater aqui", assessores ouviam do governador.
Para evitar sugestões de favorecimento, Covas resolveu dar uma cartada que, percebeu depois, não teria fôlego para sustentar.
Em agosto de 95, reuniu os líderes partidários no Bandeirantes e anunciou que venderia patrimônio do Estado para pagar metade da dívida com o Banespa. O resto seria refinanciado em até 35 anos.
Era uma saída de difícil execução. Vender imóveis para entregar o dinheiro era contar com a sorte.
Entrou em cena o secretário de Política Econômica da Fazenda, José Roberto Mendonça de Barros, que na época era apontado como "salvador da pátria".
Sua casa, em São Paulo, passou a sediar reuniões. Os encontros aconteciam às sextas-feiras à tarde no BC e, nas manhãs de segunda-feira, na casa de José Roberto.
Participavam, além do anfitrião, Loyola e Alkimar, pelo time federal, e a dupla Nakano e Dall'Acqua pelo Estado. Às vezes, o interventor Feitosa também participava.
Não raro, os assessores de Covas saíam das reuniões e iam direto ao Palácio discutir as novidades.
Movimentação tucana
Em setembro, Loyola se encontrou com Covas nos Bandeirantes para informá-lo que o BC não poderia garantir o dinheiro de metade da dívida, que o Estado propunha pagar com ativos.
Preocupado com a operacionalização de sua proposta, Covas procurou o então ministro José Serra, que se mostrou surpreso de o acordo não estar fechado. O ministro havia ouvido de Malan, Loyola e do ministro Clóvis Carvalho (Casa Civil) que tudo ia bem.
Serra levou a preocupação de Covas a Clóvis, e este chamou Nakano para ir a Brasília.
Dias depois, já em outubro, Clóvis e Nakano se encontraram. Na reunião, Clóvis apresentou uma sugestão de Malan: que o economista Adroaldo Moura da Silva fosse incorporado à negociação. Amigo de Covas, ele poderia ajudar a operacionalizar o acordo.
A proposta foi aceita, mas o apoio decisivo veio de Sérgio Motta (Comunicações), que trouxe o presidente do BNDES, Luiz Carlos Mendonça de Barros (irmão de José Roberto e amigo de Motta), para as negociações.
Depois de algumas reuniões em finais de semana, em São Paulo, o BNDES concordou em adiantar os recursos para que o Estado quitasse metade da dívida do Banespa.
Seria uma espécie de empréstimo até que o patrimônio oferecido por São Paulo fosse vendido.
Parecia tudo certo. A proposta teria o impacto político desejado, o banco ficaria com São Paulo, o Estado rolaria sua dívida. Mas a conta não fechava.
São Paulo oferecia a Fepasa (rede ferroviária do Estado) e os aeroportos de Congonhas e Viracopos -cuja propriedade do Estado ainda hoje é questionada pela União.
A proposta chegou a se transformar no primeiro protocolo de intenções assinado -com festa- pelos governos estadual e federal, em 12 de janeiro de 1996.
O acordo congelava a dívida do Estado com o banco em 15 de dezembro, quando a soma era de aproximadamente R$ 15 bilhões.
A Assembléia aprovou o acerto em 16 de fevereiro, véspera de Carnaval. Do plenário do Senado, o consentimento saiu em 6 de maio.
No Senado, a batalha contrapôs o presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), a Covas e obrigou FHC a interferir mais uma vez.
Em reunião no Planalto provocada por Gilberto Miranda (PMDB-AM), FHC sugeriu que Pedro Piva (PSDB-SP), o suplente que ocupou a vaga de Serra por dois anos, fosse o relator. A sugestão foi acatada.
Mas Covas voltou atrás. Percebeu que tinha feito um péssimo negócio se comprometendo a pagar cerca de R$ 65 milhões por mês por 30 anos para manter o banco.
As negociações entraram em banho-maria no final de maio deste ano, quando a Fazenda resolveu atacar outro problema: a dívida dos Estados.
Entrou em cena Pedro Parente, secretário-executivo da Fazenda. A estratégia foi deixar São Paulo para o final: é a maior dívida já negociada no país, de R$ 44 bilhões. E inclui o Banespa, que tem o maior rombo financeiro internacional: R$ 24 bilhões, contando dívidas do Estado e privadas.
Os parâmetros do acordo foram determinados nas negociações com Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Evita-se, assim, a impressão de favorecimento para São Paulo.
As reuniões formais sobre São Paulo começaram em outubro. Foram cinco, sempre às quintas-feiras, em Brasília, com Parente, Nakano e Dall'Acqua.
Resultado: o Banespa será federalizado. São Paulo paga 20% do que deve à União, vendendo ativos. Parcela o restante em 30 anos, com juros de 6% ao ano, mais a variação cambial. O acordo depende da Assembléia e do Senado.

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