São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 1996
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Nasci em 62 e envelheço na cidade

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Ira! nunca foi de minhas bandas preferidas. Eu achava tudo muito parecido com The Jam e não gostava das letras, infantis demais.
Além disso, a cena paulistana de rock nos anos 80 me transmitia uma sensação incômoda de panelinha, ação entre amigos. Parecia haver uns 20 músicos, que se multiplicavam em centenas de bandas.
Então, se o Ira! jamais caiu no meu gosto, por que me pego cada vez com mais frequência cantarolando "feliz aniversário/envelheço na cidade", ou assobiando junto quando o rádio toca "eu morreria por você"?
Associação de memórias é a resposta mais imediata. As canções do Ira! desencadeiam lembranças de ter 22 anos e se julgar eterno. De achar que é só ficar esperando para que coisas estupendas nos aconteçam e mudem nossa vida para sempre.
Sob esse raciocínio, o Ira! não tem valor em si, mas pelo menos nos atira de volta a um tempo de descobertas em que, como dizia o escritor americano William Faulkner, os verbos conhecer e aprender não davam lugar a um terceiro: o aterrador acomodar-se (também conhecido nestes trópicos tão tristes como "ter jogo de cintura").
Mas acho que não é só isso.
Nas palavras do crítico/sociólogo britânico Simon Frith, "parte do prazer da cultura pop é falar sobre ela". E eu acrescentaria: uma parte ainda maior é lembrar-se.
Com o distanciamento que só o tempo e a vida em outra cidade permitem, vejo hoje que o Ira! refletia acima de tudo São Paulo, cidade sombria e ansiosa, anticontemplativa até a medula.
Metrópole monstruosa, mix bizarro de pobreza terminal e inferno high-tech, São Paulo é uma cidade onde jovem nervoso gosta de rock e ponto final. Onde em estádio de futebol é possível encontrar, entre a galera dos Gaviões da Fiel, um cidadão da periferia vestindo camiseta da banda ultrapesada Poison Idea.
(fenômeno parecido aconteceu no show dos Sex Pilstols do Ibirapuera: na platéia, uma figura que parecia vinda diretamente de um romance de Guimarães Rosa usava chinelos e camiseta da banda canadense Skinny Puppy, barulheira séria).
Quase sempre derivativo, de qualidade rasa. Mas quem se importa? É movida a três ou quatro acordes de guitarra que São Paulo toma forma. Uma forma, para mim, nostálgica.
A nostalgia é tão inevitável quanto a morte e talvez isso explique o "revival" de Ira! em algumas rádios paulistanas.
A angústia de ter de cumprir serviço militar ("eu tentei fugir, não queria me alistar/ Eu quero lutar, mas não com esta farda"), a ilusão de que o futuro é essencialmente luminoso ("nasci em 62!")...
Estava tudo lá, mas demorou um pouco para cair a ficha.

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