São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Bimbalham os sinos em louvor do homem feliz

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Engrena a ré e ajeita o carro dentro da garagem. Tudo sairá bem. A mulher distrairá as crianças enquanto ele vai abrir a mala do automóvel e apanhar os presentes, os miúdos, aqueles que ficaram para a última hora.
A bicicleta da filha mais velha e o velocípede da menor já estão há mais de uma semana no quarto da empregada, escondidos da curiosidade das garotas. Ficaram faltando aquilo que elas chamavam de "porcarias". A lista que elas haviam feito incluía muitas porcarias: bonecas, jogos de armar, brinquedos de corda, caixinhas de música, caixas de bombons, roupas.
Pois agora tirava os enormes embrulhos da mala do carro e atravessava o quintal, aderente às paredes como os lobos de desenho animado, evitando ser apanhado em ignominioso flagrante.
Na semana anterior, gastara o domingo armando a árvore de Natal. De tanto subir e descer uma escada meio bamba, de tanto curvar o pescoço e os braços, estava com as costas doloridas. Culpou a idade, a má postura quando escrevia, o medo de tomar remédios.
O que interessava, afinal, é que a árvore ficara imponente e colorida, as crianças passavam a noite olhando as luzinhas piscarem. Depois, quando todos iam dormir, ele é quem ficava sozinho, fiscalizando a árvore, tomando conta das luzinhas que não podiam queimar.
Conseguiu guardar os embrulhos no armário que havia lá para as bandas do fim do quintal. À noite, quando as meninas estiverem deitadas, ele virá buscar.
Sempre que há mudança de cozinheira, enquanto a mulher faz um interrogatório medieval para saber quem é e o que costuma fazer a candidata ao emprego, ele se limita a uma única pergunta: "Sabe fazer rabanadas?"
O Natal podia mudar, ele podia mudar (e mudou muito), mas as rabanadas não podiam mudar. Tinham que ser como as que a mãe dele fazia, grossas, encharcadas de leite, polvilhadas de açúcar e canela, macias e perfumadas.
Na copa, a mulher enfeita um abacaxi com fitas vermelhas, ele passa pela mesa e verifica que as passas estão boas, melhores do que as do ano passado.
As meninas já estão excitadas, pedem que a árvore seja logo acesa. Ainda não são seis horas, a tarde está clara, suave, a noite de Natal não começou, mas ele está em casa e quem manda em sua casa e em seu Natal é ele mesmo.
Com um gesto solene, valorizado por uma hesitação imaginária, acende a árvore, senta na poltrona em frente e fica olhando tudo. A casa, os móveis, os lustres, o braço da mulher que aparece na porta que dá para a copa, o cheiro das rabanadas, a geladeira abarrotada de coisas gostosas e geladas, o abacaxi cor de creme, enrolado em fitas vermelhas.
As meninas agora batem palmas, acompanhando o anúncio da televisão onde há um trenó puxando um Papai Noel imenso de gordo pelo meio da neve.
Com preguiça de sair da poltrona, ele inventaria mentalmente se na geladeira está o Grandjó, o vinho branco português muito doce, doce demais, que em criança ele adorava e agora detesta, mas as meninas, talvez por imposição genética, gostam de tomar -e ficam com os olhinhos brilhando num estranho pleonasmo, os olhinhos delas brilham sem vinho mesmo.
Ele sente, então, um pouco de sono. Deve ser cansaço. Virara-se muito naquele fim de ano, trabalhara como um condenado, adaptara dois Júlios Vernes e um Mark Twain para uma editora especializada em livros infanto-juvenis, levara empurrões pela cidade para comprar tantos presentes contraditórios e agora tinha de esperar pela ceia, fazer as crianças irem para a cama, depois o trabalhão de apanhar os embrulhos, a bicicleta, o velocípede (haverá muita cara arranhada nos próximos dias, mas no armário do banheiro há sólido estoque de mercurocromo). Por tudo isso ele se sente cansado e fecha os olhos.
E está de olhos fechados quando, de repente, há um silêncio em torno de tudo, um silêncio fundo e estanque, que imobiliza o tempo, que parece nascer do espaço. As meninas pararam de bater palmas, estão se aprontando para a ceia. A mulher vem lá de dentro, trazendo o abacaxi enfeitado e coroado quem nem um rei.
Ele abre os olhos mais uma vez para ver aquilo tudo, apalpar a sua festa que tem cheiro de rabanada e gosto de lembranças e cor de árvore de Natal.
Mas logo fecha os olhos, novamente, com força e depressa, para jogar aquilo tudo na memória, âncora que descerá até o fundo e o amarrará num breve e banal instante. Instante de Natal. Instante dele mesmo.

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