São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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João Paulo 2º, o Richelieu polonês

ROBERTO ROMANO

Há um elemento comum usado pelos donos do mando, laico ou religioso, para enfeitiçar o público: a cooptação da imprensa. Se o resultado for positivo e responder às suas expectativas, a mídia é "esclarecida". Caso oposto, ela é "leviana" etc.
De Nixon aos seus clones sul-americanos, o primeiro movimento dos autocratas vai no sentido de atacar os meios de comunicação. Mas tal estratégia só é eficaz quando os jornalistas fecham os olhos voluntariamente, em proveito de sinecuras e vantagens.
Nem sempre o jornalista é venal, e o líder pode ser marcado pela simples desonestidade no mando. O caso do papa João Paulo 2º é paradigmático. Com lucidez, escreveu em 1979 o filósofo Gérard Lebrun: "Hoje, a sorte dos intelectuais poloneses é, sem dúvida, pouco invejável; mas seria muito melhor se Karol Wojtyla porventura fosse um Richelieu polonês? Seja qual for a estima que impõe João Paulo 2º, é preciso reconhecer que há algo de Pio 9º nesse homem".
Pio 9º é o papa do "Syllabus", base dos apoios posteriores da igreja ao fascismo e aos governos ditatoriais do século 20. E não se diga que "a igreja recusou tais alianças". Sim, depois que o mando secular se desejou total. Antes, ocorreram as concordatas e o silêncio cúmplice nos golpes de Estado que desgraçaram milhões de pessoas.
João Paulo 2º domestica as massas e controla a mídia, diz o seu biógrafo, Carl Bernstein. Desde o primeiro encontro com jornalistas, o pontífice mostrou-se disposto à manipulação.
Cito o próprio Bernstein: quando estava para terminar o show inaugural de seu reinado, perguntaram-lhe se a entrevista coletiva iria se repetir. "'Vamos ver como os senhores me tratam' -retrucou. Era uma amostra de como ele iria tratar a imprensa durante todo o seu pontificado. A imprensa era um clã a ser hipnotizado com seu charme pessoal, um instrumento a ser usado para o benefício dele próprio." ("Sua Santidade João Paulo 2º e a História Oculta de Nosso Tempo").
O Richelieu polonês é inflexível e retrógrado. Tudo isso pode ser esquecido, tratando-se de um político leigo. Mas ele não tem caridade, o que merece reprovações num cristão qualquer. O mesmo Bernstein, encantado com a figura do pontífice, indica fatos, nessa ausência do imperativo cristão (leia-se o apóstolo Paulo, 1, Coríntios, 13).
Há o caso de Carmen Gloria Quintana. Durante um ato público, "os soldados de Pinochet empaparam-na de gasolina e lhe atearam fogo. Suas orelhas ficaram reduzidas a dois orifícios, e seu rosto era uma mistura de manchas marrons, cor-de-rosa e brancas. Convidado a receber essa pessoa, o pastor só teve uma resposta: 'Já sei de tudo, já sei de tudo' -murmurou ele enquanto passava por ela e seguia adiante apressadamente".
Lembram-se do samaritano? O sacerdote passou apressadamente, o levita, idem. Só um homem desprezado pelos "bons" socorreu a vítima. João Paulo passou apressadamente, ignorando o mandamento grafado em Lucas, 10, 25-37. Mas, ao entrar na casa do tirano chileno, estas foram as suas palavras: "Venho como sacerdote para dar a bênção da paz a esta casa e àqueles que nela moram" ("Sua Santidade...", página 469).
Quem age assim trai o cristianismo, mesmo sendo papa. Esse ofício não impediu a simonia de muitos pontífices, resumida por Dante no "Inferno", nem o deboche. Basta referir os Bórgia. Os direitos humanos deveriam sobrepujar a "raison d'Etat" vaticana.
Quem é seletivo na atribuição dos direitos, como João Paulo 2º, que os defendeu para os poloneses, mas os negou para os sul-americanos e os nega para a mulher e outros marginalizados, não pode ser "um grande humanista".
A cidade de São Paulo sofre uma crise espiritual tremenda. Com a saída do cardeal Arns, os deserdados perdem seu defensor. Carl Bernstein não diz uma palavra sobre a desumana e maquiavélica perseguição contra o arcebispo, capitaneada por Sua Santidade. Razões políticas ditaram o esquartejamento da maior diocese católica do mundo. Os inimigos dos direitos humanos agradecem.
Duas mulheres, o setor mais reprimido pelo Sumo Sacerdote, falam sobre ele. A primeira o ajudou a criar a imagem de intelectual, corrigindo seu livro sobre ato e conhecimento, "A Pessoa Atuante". Diz a senhora Tymieniecka: "Ele não é, em absoluto, tão humilde quanto aparenta. Nem é modesto". A senhora Sadik, funcionária da ONU para os problemas femininos, exclama, após constatar a frieza impiedosa do papa: "Ele não é, em absoluto, a pessoa benevolente que sua imagem pretende apresentar" ("Sua Santidade...", páginas 151 e 528).
João Paulo 2º não faz segredo de sua repulsa à democracia, no interior e fora da igreja. Unindo o marketing holywoodiano à manipulação da imprensa e ao integrismo mais impiedoso, ele é um exemplo de tirania para os governantes leigos.
Refletindo sobre seus atos, sentimos o quanto é verdadeiro o dito de um pensador: "A igreja é mesmo divina; caso contrário, os homens já a teriam destruído".
Depois do papa Bórgia, de Júlio 2º, de Pio 12, de João Paulo 2º, ela continuará existindo, condenando os fariseus de todos os matizes. Afinal, vale a palavra de seu verdadeiro fundador e único infalível: "Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam, et portae inferi non praevelebunt adversus eam". Esta é certeza trazida pelo Natal, nestes dias tenebrosos em que o mundo parece um inferno absoluto, inclusive, e talvez sobretudo, pela conivência dos burocratas religiosos.

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