São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 1996
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Traquinagens de um alcaide

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

A coerência não é a maior virtude de um político. Dizem alguns que, no ser humano, os dois atributos são incompatíveis, ou seja, a coerência e a política. O político é necessariamente o cidadão que, por desejar o poder mais do que servir à sociedade, ostenta a "verdade do momento", que é diferente da "passada" e não será lembrada no "futuro".
O alcaide paulistano, cujo mandato se encerra no próximo dia 31 de dezembro, não poderia ter um perfil distinto e, por ser mestre na arte da política, fez questão de encerrar seu mandato com magnífica demonstração de incoerência, atributo maior de quem ama o poder pelo poder.
Foi eleito o burgomestre, em 1992, por ter atacado a prefeita Erundina pelo aumento do IPTU. Com indiscutível mau gosto, alicerçou sua campanha na frase "Votou no PT, tomou no IPTU".
Elogiou o presidente do Tribunal de Justiça, o eminente desembargador Odyr Porto, quando este deferiu liminar em ação direta de inconstitucionalidade, suspendendo a eficácia da lei que havia instituído a progressividade do IPTU, mantendo a incidência municipal em 0,2% (alíquota única). A decisão daquele magistrado fora absolutamente correta, a ponto de hoje o STF ter conformado orientação idêntica, repelindo a progressividade do IPTU, adotada em leis de outros municípios ao arrepio dos ditames constitucionais.
Dessa forma decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, à época, na mesma linha em que agora o pretório excelso vem decidindo, em clara indicação de que seus eminentes desembargadores apenas anteciparam a melhor exegese sobre a matéria.
É de lembrar, de resto, que o 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, pela súmula 43, consagrou, antes mesmo do Supremo Tribunal, a inconstitucionalidade da progressividade do IPTU: "É inconstitucional o art. 7º da lei nº 6.989 de 29/12/66, alterado pela lei nº 10.921, de 30/12/90, do município de São Paulo, que instituiu a progressividade de alíquotas do imposto predial e territorial urbano (1º TAC Civil -Arguição de Inconstitucionalidade nº 498.328-0-SP; órgão especial, j. em 22/6/95, rel. Juiz Rodrigues de Carvalho, maioria de votos)".
Por essa razão, a recente alteração de interpretação do colendo Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a matéria é inócua, na medida em que:
1) pelo recurso interposto pela Procuradoria Geral da Justiça, o STF deverá restabelecer o entendimento que o próprio TJ adotou, quando da liminar;
2) o restabelecimento, pelo Tribunal de Justiça, da eficácia da lei, em controle concentrado, quando prejudique o cidadão, produz efeitos "ex nunc" (a partir de agora) e não "ex tunc" (desde o início), como ocorre no controle difuso;
3) o tribunal competente para prestar o controle difuso, isto é, para todas as questões que versarem a partir de agora sobre a matéria, caso a caso, é o 1º TAC, que já sumulou a inconstitucionalidade da progressividade no IPTU.
Pretender, pois, cobrar o IPTU progressivo, declarado inconstitucional pelo STF, em controle difuso, e pelo Tribunal de Justiça, em medida cautelar -ainda que, em controle concentrado, a eficácia da lei tenha sido restabelecida, porém sem retroatividade, entendimento que deverá ser alterado pela Suprema Corte-, é uma acintosa demonstração de desrespeito aos direitos do cidadão e uma brutal exteriorização de despotismo tributário.
Ora, o mesmo cidadão que atacara a prefeita Erundina, sob a alegação de que era arbitrária ao querer exigir um IPTU inconstitucional, quer agora cobrar aquele mesmo IPTU que a Justiça não permitiu que a prefeita cobrasse, ficando com o "espólio" que ajudou a torpedear, para que não caísse em mãos dela, durante a campanha de 92.
Se, juridicamente, é insustentável a exigência, moralmente é inaceitável, pois, na "linguagem jurídica", "ninguém pode se beneficiar da própria torpeza", o que vale dizer: nenhuma pessoa pode moralmente pretender tirar benefícios legais de atos condenáveis por ela mesma praticados.
Certamente, todos os contribuintes deverão insurgir-se contra a exigência e discuti-la, como parcela ponderável já fez, com resultados favoráveis junto ao 1º TAC.
O que é lamentável, todavia, é que os contribuintes menos avisados, que desconhecem seus direitos, podem ser levados a pagar o que não devem, agregando às burras municipais tributo manifestamente inconstitucional.
Para não perder o humor com atos dessa natureza é que prefiro, na linguagem dos tempos de moleque, entender que se trata de uma traquinagem do sexagenário alcaide paulistano.

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