São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 1996
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Dos guichês da Fazenda às rádios FM do Natal

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nenhum constrangimento quando Felix esmurrou a portinhola do guichê na Secretaria da Fazenda -ainda que a funcionária já fosse idosa e devesse ganhar pouco.
Uma plaqueta anunciava que o atendimento ao público ia até às 16h30. Pois eram 16h10 quando a funcionária, ignorando a fila à espera, fechou o guichê para licenciamento de automóveis.
Felix seria o próximo a ser atendido, depois de longa espera naquela que já era a terceira fila por que passava no imponente prédio da Secretaria da Fazenda, em São Paulo.
Esmurrava, gritando que ia denunciar aquilo aos jornais, quando a funcionária abriu uma fresta e pediu os documentos do carro. Ele exigiu explicações sobre o horário especificado na plaqueta.
- Acontece que, além de atender vocês, nós ainda temos que fazer a estatística, antes de irmos embora. Por isso fechamos um pouco antes. Além disso, nesta época de Natal...
Estatística. Natal. Cambada de vagabundos. Nenhuma pessoa medianamente sensata aceitava a desculpa esfarrapada. É essa gente trombuda, vagarosa e sonolenta que o indivíduo enfrenta na administração dos negócios públicos.
Tudo isso porque o banco não enviara à Secretaria da Fazenda uma guia de IPVA paga em 1994. Então ficava Felix rodando do Detran à secretaria, para que localizassem, em microfilme, a guia devidamente paga por ele havia anos.
Tratado feito lixo, na espera fastidiosa das filas -se não quisesse encher o bolso de despachantes baços e desonestos como os próprios processos da burocracia-, Felix revoltou-se. Afinal, não tinha culpa, andara direito o ano todo, sem multa, sem nada.
Secretaria da Fazenda, Detran, cartórios são todos dentes de uma engrenagem enferrujada -que não há computador que modernize-, que existe para emperrar a vida do cidadão, para ir aos poucos roendo a carne dele, enervando-o até que ele não aguente e entre no esquema de propinas e privilégios que lhe garantam um atendimento de gente.
Felix achou bem feito quando leu no jornal que havia um esquema de venda de concessões de rádios FM dentro do próprio Ministério das Comunicações, da Câmara, uma cambada de gente envolvida.
São os poderes públicos protegendo e garantindo sempre muita safadeza. Quando se pensou, passado o desmascaramento da era Collor, que a corrupção tinha cedido, tome escândalo e parasitismo social.
É o que acontece quando o Estado é o inimigo "pois não tem iniciativas que visem ao bem coletivo" (Dante Moreira Leite, lendo Manuel Bomfim). E Bomfim, um estudioso do Brasil de antigamente, já via o nosso Estado "como um organismo dominador, tirânico, oneroso e quase inútil (...)".

E-mail mfelinto@uol.com.br

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