São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 1996
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"Chic" ataca pós-peruas e jecas de chinelo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"As peruas são o sintoma de uma doença: o exibicionismo financeiro. A perua é uma vitrine viva das marcas mais conhecidas, mais caras e mais visíveis. Sua segurança sustenta-se na manifestação explícita da riqueza. Tire o ouro, as griffes, os relógios, os carros de uma perua e você terá diante de si um ser frágil, sem ação e identidade."
Essa é uma das aulas de vida do livro de Gloria Kalil, "Chic -Um Guia de Moda e Estilo", que vem botar ordem e criticismo no espantoso carnaval da moda que nos assola.
O livro estourou e esgotou na primeira semana. Segunda edição, só em janeiro. Com "Chic", finalmente alguém tem a coragem de botar o dedo nas cabeleiras tingidas, nas cascatas de laquê, nas bolsas "chanel" douradas, nos vestidos azuis com debruns de oncinhas, nos "leggings" abacate, nos uniformezinhos com galões militares (lembram de Rosane Collor no Japão?), nos jeans metalizados, nesse pesadelo de luxo sangrento que é nosso mundo das roupas.
Estávamos todos intimidados com a sórdida liberdade pós-moderna. Existe hoje uma unidade de estilo, uma lógica decorativa que vai desde o cabelo em repuxo da piranha "clubber" até os prédios pós-pós da av. Berrini, desde os "halls" de banco até a arquitetura sexy dos quartos de motel.
Vá a um casamento de catedral, com damas de honra cor-de-rosa, com patronesses de "walk-talk", com Ray Conniff tocando a marcha nupcial, vá a uma festa de debutantes com pré-peruas núbeis saindo de enormes conchas com gelo seco. É imperdível.
Há um desejo de voltar no tempo para antes de uma Revolução Francesa, para um Versalhes de papel pintado. Ou então não se limite a visitar o "Leopoldo" ou o "Apocalipse Grill", onde existem até peruas com efeitos especiais, com jóias pisca-pisca.
Vá ao aeroporto, à rodoviária. Vejo o outro lado da liberdade: pernas cabeludas de short embarcando em boeings, bermudas laranja, bonezinhos "rap", camisas de basquete, tênis feios como tubarões, como jacarés, com sapos, botas de cobra, tamancos assassinos, as maravilhosas sandálias "Rider", a mais feia invenção do plástico reciclado, "anabelas", dedos de fora, bundas de pêra, "bois de chuchu", barrigonas orgulhosas com marcas coreanas, camisetas de deputados em campanha, carimbos de Miami em bundas de baleia.
As pessoas parecem mercadorias, com griffes de contrabando. Todos parecem objetos de decoração, abajures, almofadas, pães-de-ló, cheeseburguers. Há um profundo desejo de ser marca, de ser coisa.
"Ninguém tem nada com isso, é minha liberdade!", dirá o boçalzão de tênis fosforescente e short do Paraguai. "Dane-se, é meu direito usar o que quiser!", dirá a perua de cabelo turquesa e sapato de acrílico.
Realmente, nesse "laissez-fairisme" neoliberal da moda de hoje, tudo bem. Todos podem se pavonear no horror de suas individualidades.
Mas o espantoso é que essa idéia de liberdade vem vestida de um desgrenhamento pop, de uma visão de que o livre é o "danem-se os olhos dos outros", que o livre é uma espécie de "hippie" careta de rodoviária ou um delírio de "drag-queens" de direita.
Há em curso uma revolução dos escrotos, de mocréias, de barangas e barangoso, há a confusão de "casual" com esculhambado. Por meio deles, vemos o horror da idéia atual de "indivíduo".
A musa de todos seria quem? Para os ricos, talvez Ivana Trump, esse cruzamento de Lassie com Brigitte Bardot. Para os "classe-médias", talvez um "look" Gugu Liberato vespertino, ao som de pagode.
É um conformismo de individualistas bobos, de narcisistas de linha de montagem. Assim como a perua aspira a ser uma princesa imaginária de uma monarquia cafajeste, os "chinelo e calção", os "riders e bermuda" são a decadência do "grunge".
Gloria Kalil investe com elegância contra essa pós-modernice e esboça discretas normas e rituais, discretos códigos de bom gosto.
Ela me disse uma vez que "a futilidade é uma forma de violência". A violência está nesse descaso para com os outros que é simétrica ao desprezo aristocrático das Maria Antonietas de cabelereiros.
Os dois maus gostos se encontram no infinito: Jecas de churrascaria e bregas-chic de discotecas se unem no mesmo horror. E todos apontam seus celulares contra nós, esse acessório fálico de poder ostensivo.
Todas as conquistas da moda do século 20 foram esquecidas. Olhando uma revista como "Caras", o precioso museu colorido de nossa caretice, vemos que o século 20 não passou.
Não houve a arte moderna, não houve estilos. Ninguém aprendeu nada. Não houve os grandes estilistas franceses, não houve os caricaturistas, não houve Fellini, Steinberg, nada. Não houve a arte povera, os anos 60, a liberdade. Nada. Tudo se restaurou. A sociedade de consumo apenas acelerou uma democracia aparente. Uma democracia "prêt-à- porter".
A verdadeira democracia está na elegância. A elegância é diferente da futilidade, ou do luxo. A elegância é o respeito aos olhos dos outros. A elegância é uma doce equação entre a vaidade e o respeito.
O "look" neoliberal brega confunde "liberdade de mercado" com o mercado da liberdade. "Chic" de Gloria Kalil é uma humanização da vaidade.
Estávamos precisando desse livro.

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