São Paulo, terça-feira, 24 de dezembro de 1996
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Natal fim- de-século

ANDRÉ LARA RESENDE

"É lógico que Papai Noel tem computador e muitos ajudantes -como controlar os pedidos e estar em tantos lugares ao mesmo tempo?" A observação é de meu filho Francisco, fazendo apelo à lógica para concluir sobre a implausibilidade de que um único ser possa responder isoladamente por tão árdua tarefa.
A expressão firme, o ar superior de quem me explica algo que eu já deveria ter compreendido, dá lugar a uma sombra de dúvida: ainda assim há algo de mal explicado nessa história. Respondo às novas perguntas de forma suficientemente vaga para me equilibrar entre a necessidade de não agredir excessivamente a lógica, parecer idiota, e o desejo de não desmistificar prematuramente a mágica do Natal.
Salva-me sua súbita mudança de tema. Ao intuir aonde o levaria perseguir de forma implacável a lógica, Francisco abandona a estrada da racionalidade e opta pelo mito. Aos cinco anos é compreensível. Mas não pude deixar de pensar que, em idades mais avançadas, continuamos submetidos ao mesmo dilema.
Aprendemos a valorizar a racionalidade e a desconfiar das autoridades, das regras e dos mitos. Há três séculos, os pensadores do iluminismo viram no triunfo da razão a pedra fundamental de uma sociedade ordenada de indivíduos livres. Sem apelo à revelação do pensamento religioso, a razão estabeleceria a correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo -substituiria o mito, a violência e a arbitrariedade pela ciência, pelo mercado e pelo Estado de Direito.
O otimismo iluminista não resistiu ao nosso século. Com o desaparecimento do sagrado, perdeu-se também a noção de unidade e de sentido do mundo. Na primeira metade deste século, assistimos à crítica intelectual da sociedade e da cultura moderna: a razão objetiva, o racionalismo universalista do iluminismo, teria dado lugar à razão meramente instrumental. Sem princípio superior de racionalidade, ficamos restritos aos individualismos, aos particularismos e à mera busca de interesses materiais.
Na segunda metade do século, a desconfiança da modernidade se difunde: não há hoje, às portas do século 21, como escapar da angústia difusa da perda de sentido, da impossibilidade de privacidade, da invasão da publicidade, da sociedade convertida em multidão consumista da qual o Natal de nossos dias é um doloroso testemunho.
Vemo-nos hoje atormentados entre a necessidade de levar até o fim a secularização exigida pela racionalidade e a perda de sentido que ela acarreta. Não temos como dar marcha a ré e abdicar da racionalidade instrumental, das extraordinárias conquistas materiais do capitalismo de massa, mas somos profundamente nostálgicos de um mundo mágico que dava sentido à existência.
Diante do impasse, parecemos optar pelo pior: abdicamos de todo vestígio de uma racionalidade objetiva -que hoje seria inevitavelmente céptica- e adotamos uma racionalidade instrumental radicalizada para compatibilizá-la com a superstição, o esoterismo e o individualismo subjetivo.
Fico com a liturgia do Natal do menino Jesus de Belém.

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