São Paulo, quinta-feira, 26 de dezembro de 1996
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48 anos depois

CARLOS ALBERTO IDOETA

Em dezembro de 1948, as Nações Unidas proclamaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trinta artigos distinguiam a civilização da barbárie e prometiam um mundo sem guerra, genocídio, tortura, fome ou escravidão. Emergia a pessoa, com direitos e deveres, num espaço antes exclusivo do Estado nacional soberano.
O presidente da Assembléia Geral da ONU, o australiano H. V. Evatt, disse então que, pela primeira vez, a comunidade mundial organizada reconhecia a existência de direitos e liberdades fundamentais transcendendo a soberania do Estado e proclamava um documento em que "milhões de homens, mulheres e crianças, a muitas milhas de Paris e Nova York, buscariam ajuda, orientação e inspiração".
Pactos internacionais e legislações nacionais depois viriam estabelecer limites, submeter governantes e governados a interdições fundamentais na defesa do "irredutível humano" invocado em 1993 pelo secretário-geral da ONU, Boutros-Ghali, na abertura do Congresso de Viena. Depois de Viena, parece insustentável a reincidência no suposto "ocidentalismo" ou "eurocentrismo" dos direitos humanos.
Afligem as notícias constatadas por quem quer fazer cumprir a promessa daquele mundo livre do medo e da miséria. Ruanda e Zaire nos remetem à questão dos refugiados.
Vulneráveis, sem peso político, são mais de 15 milhões, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Mais da metade dos refugiados hoje tenta sobreviver na África e no Oriente Médio. Mulheres e crianças são a maioria.
A frágil paz da Bósnia-Herzegovina deixa atrás 27 mil "desaparecidos" e a necessidade de busca da verdade e da justiça. Cooperação financeira internacional é esperada para a escavação das sepulturas coletivas, a identificação das vítimas e a devolução dos restos mortais às famílias para um enterro digno.
Aguarda-se a punição dos responsáveis. Mo Lihua esteve entre os presos de consciência nas prisões chinesas, que encerram um número incalculável de dissidentes pacíficos e de condenados à morte. As Forças Armadas colombianas, responsáveis por atrocidades, foram treinadas e equipadas pelos EUA.
Em janeiro passado, a seção norte-americana da Anistia Internacional instou o governo do seu país a suspender o fornecimento de helicópteros Super Cobra ao governo turco, usados no transporte de tropas para áreas remotas onde civis são torturados e mortos.
Fabricantes franceses e italianos se candidatam a novas encomendas turcas para seus Cougars e Jet Rangers. A Espanha descumpre a legislação nacional e européia e exporta secretamente armas a governos violadores como os da Arábia Saudita, Irã, Jordânia, Marrocos e Tailândia.
Israel inova ao legalizar a tortura sob supervisão médica nos interrogatórios de palestinos. A Autoridade Palestina detém centenas de pessoas sem acusação ou culpa formada.
A nova ofensiva do governo cubano contra a dissidência insiste na perseguição, na detenção de presos de consciência e no exílio forçado.
No Irã, as relações homossexuais são punidas com a morte. No ano passado, o presidente Mugabe, do Zimbábue, perguntou se os homossexuais "ainda podem ser considerados pessoas, se se comportam pior do que porcos".
O governo indonésio continua a restringir o acesso de organizações nacionais e internacionais ao Timor Leste. A Anistia denuncia a perseguição oficial, a condenação de presos de consciência à prisão perpétua, a tortura, as execuções extrajudiciais e os "desaparecimentos". No Brasil das execuções e dos massacres impunes, a efetiva implementação de um auspicioso Programa Nacional de Direitos Humanos espera também a demonstração de vontade política por parte do Congresso Nacional e de autoridades estaduais.
Estima-se que, a cada dia, 6.000 mulheres e meninas sofram mutilação genital no mundo. Seus órgãos genitais são cortados, amputados e frequentemente costurados.
Mas a barbárie não será inevitável, como sugere esse inventário. Mudanças são possíveis. Pedem o cumprimento das leis justas e o fim da impunidade. Investigações dos abusos e a publicação das conclusões. A pena infalível, não a perversa. Supervisão nacional e internacional de prisões, delegacias e quartéis. Um tribunal criminal internacional permanente para os crimes contra a humanidade. O compromisso da imprensa com a defesa da liberdade e das vidas por trás das mentiras. Educação para a cidadania de crianças e universitários, policiais e militares.
São escassos os meios para atendermos às carências do ser humano na transição entre natureza e espírito. Na sua defesa, nossa jurisdição é o planeta.
Na Anistia, começamos a questionar nossos modos até hoje gentis e legalistas no trato com os perpetradores e seus cúmplices e nos perguntamos se o recurso à chamada ação direta não despertaria as pessoas da indiferença e compeliria os governos a cumprir seu dever. Lembram os defensores da desobediência civil que a própria Declaração Universal, no seu preâmbulo, admite a rebelião como último recurso contra a tirania e a opressão.
Podemos esperar dos excluídos o compromisso com a ordem social?

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