São Paulo, sexta-feira, 27 de dezembro de 1996
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A TEIA

Em outubro de 1989, esta Folha publicou uma série de reportagens sob o título geral "Menos governo, menos miséria". Um dos capítulos examinava a formidável selva de normas burocráticas que asfixia os brasileiros, destacando os 952 artigos do "Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal", editado em 1952.
O artigo 630 chegava ao paroxismo de determinar o formato, o peso, a crosta, a consistência, a textura, a cor e até o odor e o sabor que deveria ter a "ricota defumada".
Quase meio século depois de editado tal regulamento e sete anos após a publicação da série, é desanimador constatar que a teia burocrática não retrocede, mas sim avança e recupera espaços que se julgavam perdidos pela racionalização do setor público.
Na última quarta-feira, a Folha mostrou que ressuscitaram, entre outras pérolas do burocratismo, o atestado de antecedentes e a exigência de autenticação de documentos, mesmo quando o original é apresentado à repartição pública.
Se algumas das exigências ficassem contidas no aspecto folclórico que as envolve, ainda seria um mal menor. O mal maior são, na verdade, dois.
Primeiro, o fato de que todo o discurso liberalizante que se tornou hegemônico nos anos 90, tanto no Brasil como no mundo, foi incapaz de comover a burocracia. Segundo, a inversão absurda da ordem natural das coisas: para tentar controlar, de resto inutilmente, os 3% da população que o ex-ministro da Desburocratização, Hélio Beltrão, aponta como dispostos a praticar fraudes, inferniza-se a vida da imensa maioria dos brasileiros (os 97% restantes).
Todo o discurso sobre a reforma do Estado, que exige mudanças constitucionais sempre difíceis ou vagarosas, cai no vazio quando se verifica que alterações bem menos pomposas, mas muito mais relacionadas ao cotidiano da população, são feitas e depois desfeitas ao capricho de um burocrata escondido atrás da trincheira de sua escrivaninha.

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