São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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Para começar o ano, a ode do astrônomo Carl Sagan à ciência; Faltam 18 votos; Chega para lá; Trabalheira; Demarcação; Reciclagem fracassada virou sucesso oficial; Mais televisões no Brasil e empregos na Ásia; O sargento cego é um deputado que enxerga; ENTREVISTA; Boa notícia

ELIO GASPARI

Para começar o ano, a ode do astrônomo Carl Sagan à ciência
Tem gente que aproveita o Ano Novo para emagrecer, parar de fumar ou arrumar a estante. O astrônomo americano Carl Sagan (na foto) ofereceu uma nova idéia para começar bem o ano de 1997. Basta ler (ou passear) seu livro "O Mundo Assombrado pelos Demônios". É uma dieta de queima da gordura cerebral.
Sua proposta é simples: ele sustenta que as superstições contaminam a forma de pensar das pessoas, mutilam-lhes a curiosidade e colocam suas fantasias a serviço da inutilidade: "O método da ciência, por mais enfadonho e ranzinza que pareça, é muito mais importante que suas descobertas".
Sagan, o autor da famosa série de TV e do livro Cosmos, morreu há menos de um mês. Viveu procurando ensinar ao mundo que, quando as sociedades perdem o interesse nas questões científicas, correm mais riscos do que supõe a vã astrologia. Lutou contra discos voadores, expressão inventada em 1947 por jornalistas que entenderam mal o depoimento de um piloto. Contra os espíritos do passado. (Por que Alexandre, o Grande, nunca revelou onde fica seu túmulo?) Contra os ETs do Novo México, cujas naves eram apenas balões de um projeto militar americano. Esses ETs, que teriam sido guardados em segredo pelo exército, se tornaram as mães de toda uma geração de seres, ecoando até no filme "Independence Day".
Não conseguiu muita coisa. Nancy e Ronald Reagan acreditavam em astrólogos. (Tancredo Neves também, e por isso mudou a hora de sua posse no Congresso.) Nos EUA há mais astrólogos que astrônomos. Na França há menos padres que videntes e no Brasil é provável que haja menos astrônomos e padres.
Ateu (ainda que respeitando a fé alheia), calculou, com base nos rigorosos números do Vaticano, a quantidade de casos de câncer que regrediram por conta de milagres atribuídos às águas de Lourdes. Foram três, em quase 150 anos. Como um em cada 100 mil tumores regride sozinho, estatisticamente, regrediram mais tumores de pessoas que ficaram em casa. "Se você é um dos casos, vai ser difícil convencê-lo de que a viagem a Lourdes não foi a causa da regressão".
O livro é um pouco desordenado e às vezes repetitivo. Acaba sendo uma crônica das superstições pós-modernas, com um exaustivo debate dos desembarques de ETs e uma didática viagem pelo mundo das alucinações.
Nas férias, tem duas utilidades: não contém a palavra "globalização" e é difícil terminar sua leitura sem ter aprendido alguma coisa. Pelo menos a exercitar o ceticismo e, se possível, com algum método.
Ele oferece um estojo com 20 ferramentas para detectar mentiras. Dois bons exemplos:
1) A "Falsa Dicotomia", ou exclusão do meio-termo. Qualquer coisa parecida com: "Se você não é parte da solução, é parte do problema".
2) A contraposição das questões de curto prazo contra as de longo prazo: Não temos dinheiro para cuidar da alimentação infantil e para o ensino pré-escolar porque temos que combater o crime nas ruas.

Faltam 18 votos
Na ponta do melhor lápis da Câmara: o governo ainda não tem os 308 votos necessários para aprovar a emenda da reeleição. Tem 290.
Para evitar surpresas, serão substituídos pelo menos dois membros da comissão que encaminhará a emenda ao plenário.
No dia 7 de janeiro o PPB vai ao Supremo Tribunal Federal, arguindo a inconstitucionalidade da convocação extraordinária do Congresso. Pode perder, mas quer ganhar tempo.

Chega para lá
O melhor momento de 1996 do estilo Sérgio Motta de agir se deu há duas semanas, em Fortaleza, quando cortou uma aproximação do ministro do Planejamento, Antonio Kandir. Delimitou a distância que deve separá-los e mediu-a em léguas.
Kandir paga a conta de ter anunciado a privatização da Embratel depois de participar de uma reunião na qual Motta, além de dizer que o plano ainda estava no início, pediu sigilo a uma audiência que julgara leal.

Trabalheira
Pérola encontrada na legislação da Zona Franca de Manaus, definindo os requisitos para determinar que uma motocicleta foi efetivamente produzida lá e, portanto, tem direito a todas as isenções fiscais que a lei lhe concede.
1) A empresa é obrigada a montar o motor da motocicleta em Manaus.
2) Deve também montar a motocicleta.
3) Deve inspecioná-la e embalá-la.
Temporariamente, as empresas estão dispensadas da exigência da montagem do motor.

Demarcação
Não será fácil para o presidente do Banco do Brasil, Paulo César Ximenes, descobrir um jeito de botar a culpa da lista dos deputados-clientes do PPB em funcionários subalternos.
Os índios da Coordenadoria Parlamentar do banco assinaram um documento atestando que a lista é coisa de cacique. Cacique de pouca pena, do próprio BB, mas, ainda assim, cacique.

Reciclagem fracassada virou sucesso oficial
Vai mal a máquina de propaganda do governo. Há alguns meses chegou à boca do forno uma campanha publicitária mostrando o trabalho do governo no tratamento da Aids. Tinha tantos exageros que uma funcionária do Ministério da Saúde denunciou o caso dentro da burocracia oficial. Como deu em nada, ela recorreu a um atalho e levou suas ponderações ao Planalto. Elas foram acatadas, as fantasias foram suprimidas, e ela acabou demitida no ministério.
Agora paulistas e cariocas, a quem pertencem os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, estão sendo informados que o governo é maravilhoso porque está investindo num programa de requalificação de trabalhadores e no Proger (Programa de Geração de Empregos). Uma beleza, porque reciclam trabalhadores, assegurando-lhes novas oportunidades de trabalho.
Bem fariam os marqueteiros se telefonassem para o ministro do Trabalho, Paulo Paiva (061-317-5000). Poderiam ser informados que esses dois programas têm funcionado nos Estados do Sul e do Nordeste. São um sucesso no Paraná e em Santa Catarina. Em São Paulo, capotaram.
Na requalificação profissional, não se conseguiu gastar 15% dos R$ 55 milhões disponíveis. No Rio projetou-se a reciclagem de 34 mil trabalhadores a um custo de R$ 13 milhões. Treinaram-se 1.600 cidadãos e sobraram R$ 12,5 milhões.
No primeiro semestre, enquanto Santa Catarina conseguiu aplicar R$ 22 milhões do Proger, São Paulo só se habilitou em R$ 5 milhões, e o Rio, em R$ 1 milhão.
Os fracassos fazem parte da vida, mas a propaganda do sucesso onde ele não aconteceu é apenas mistificação.
A menos que se esteja confundindo o Proger com o Proer, aquele que recicla banqueiros e vai muito bem, obrigado.

Mais televisões no Brasil e empregos na Ásia
A Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica fechou suas contas de 1996. Elas são um bonito convite à reflexão política.
Os números dividem-se em duas famílias. Uma leva água para o discurso do governo. Outra, para a contradita.
Primeiro a numerologia que faz o Planalto sorrir:
1) A indústria eletroeletrônica cresceu 22% em relação ao ano passado. Faturou US$ 34 bilhões contra US$ 28 bilhões em 1995. Representa 6% do PIB (Produto Interno Bruto).
2) O valor do faturamento por empregado chegou a US$ 200 mil. Isso significa que em três anos a indústria passou a faturar três vezes mais por cada trabalhador que emprega.
3) O consumo de televisões cresceu 5%, e venderam-se 9 milhões de aparelhos. Para se ter uma idéia da dimensão desse número, em 1995 venderam-se 6,5 milhões. Em 92 as vendas estavam em 2,2 milhões.
Desse desempenho resulta que o Planalto está inteiramente certo ao dizer que o brasileiro comprou televisores que só via em vitrine, que a indústria vem crescendo e se tornando mais produtiva.
Agora, números para quem quiser chorar:
1) Desde 1990 o setor eletroeletrônico perdeu quase 100 mil empregos. Hoje dá trabalho a 170 mil pessoas. Ao final de 1997 poderão ter sumido mais 5.000 colocações, boa parte delas ocupadas por mão-de-obra qualificada.
2) As exportações de produtos do setor caíram a US$ 3 bilhões.
3) As importações subiram e ficaram em US$ 11 bilhões, ervanário equivalente à mais da metade da receita do Estado de São Paulo. De cada US$ 10 importados, US$ 2 vão para a eletroeletrônica.
Conclusão do presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica, Nelson Peixoto Freire: "Importamos equipamentos e exportamos empregos para a Ásia".
Desse jeito acaba-se importando consumidores.

O sargento cego é um deputado que enxerga
A banda podre do Acre, onde o governador tem quatro CPFs e sete inquéritos, acaba de ganhar um símbolo. É o ex-sargento da PM Roberto Filho, aposentado por cego e, por bom de vista, eleito deputado estadual pelo PMN. Já espancou médico de pronto-socorro e percorreu redações de jornais com um secretário de governo sob a pontaria de seu revólver.
Agora anunciou que pretende matar o jornalista Altino Machado, de 33 anos, com 15 de profissão e três filhos. Seu pecado foi ter divulgado a existência de um balcão de venda de gabaritos no vestibular (anulado) da Universidade Federal do Acre. A mulher do deputado e o filho do prefeito de Rio Branco, bem como alguns iluminados, fizeram provas idênticas.
Alguém poderia ensinar ao deputado que seria mais fácil sua mulher estudar um pouco, porque matar jornalista sempre acaba dando algum trabalho.
O pior da história, teme Altino Machado, é que quadrilhas insatisfeitas com o que escreve acabem usando a ameaça do deputado para ensinar uma lição ao Brasil, como fizeram quando mataram Chico Mendes.

ENTREVISTA
Vilson Kleinubing
(52 anos, senador, PFL-SC)
- Quem está transformando em pizza a CPI das emissões fraudulentas de títulos estaduais?
- O presidente da República não se indignou com o caso. Nem o presidente do Congresso, senador José Sarney. Os líderes partidários também não se indignaram. É uma lástima, porque há uma tendência para se malbaratar a indignação. Quando um deputado, num ato que lhe deve custar o mandato, pede R$ 3 milhões de propina a uma empreiteira, abunda indignação. Quando o governador de Santa Catarina, Paulo Afonso Vieira, R$ 33 milhões a uma corretora -o Banco Vetor- por um projeto de cinco páginas, falta indignação. Eu estive com o senador José Sarney e ele se comprometeu a exigir do governador que não gaste os R$ 600 milhões que tomou emprestado em outra coisa que não sejam precatórios. Sarney disse que ia falar com ele, mas não sei se fará algum efeito, porque não há precatórios para justificar essa dívida.
- A que o senhor atribui a sorte do Banco Vetor nesse negócio?
- A um fato muito simples: R$ 33 milhões por cinco páginas é muito dinheiro por milímetro quadrado de papel. Não sei se eles pagaram imposto de renda sobre esse ganho. De qualquer forma, deve ter sobrado o suficiente para uma boa distribuição entre as pessoas que participaram do serviço.
- O que é preciso fazer para que esse caso não termine em pizza?
- A Polícia Federal tem que investigar o caso, a Receita deve olhar as contas dos beneficiados, e o Banco Central deve examinar o comportamento dos seus funcionários que liberam emissões de títulos em 24 horas. Eu não sei quem cuida das fundações das estatais, mas, quando elas compraram os títulos de Santa Catarina a preços absurdos, deu-se um crime contra o erário. Finalmente, é preciso que a CPI não seja sabotada. Nisso tudo, ninguém fica indignado, mas é lícito supor que alguém ganhou dinheiro em todas as fases desse processo.

Boa notícia
A Organização Mundial da Saúde acaba de recomendar para uso, nos Estados Unidos e na Europa, o programa de controle de qualidade das caixinhas portáteis de exame de sangue desenvolvido pelo governo federal em convênio com o Hemocentro.
Esses testes, bastante simples, detectam vírus de hepatite e de HIV. As caixinhas já são exportadas para outros países da América Latina.

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