São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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Os pecados de uma trufa

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gosto de chocolate, assim, assim, não muito. De raízes mineiras passei a vida toda em São Paulo, com Natais comemorados à exaustão e Páscoas e Pascoelas frouxas. Olho para trás com remorso, as afilhadas paulistas desconsoladas ao me verem esquecer o costume do ovo. Talvez por isso nunca tenha me interessado muito pela história do cacau a partir de Montezuma. Além disso, os cozinheiros, na sua maioria, têm pouco pendor para a história. É bom ter os livros ali, à mão, para uma consulta. É interessante ler o relato de Colombo encontrando uma canoa maia que fazia comércio de cacau e que o valorizava como ouro. É bom saber que em inglês "cocoa" se pronuncia "coco" e "cacau" como cacau mesmo, rimando com "cow".
Acontece que logo depois destas amenidades começam a se amontoar os astecas, os olmecas, os toltecas, o istmo de Tehuantepec e certo cozinheiro Hunaphu que primeiro pensou o chocolate. No portal da grande cidade Maia de Piedras Negras, ao noroeste da Guatemala, vê-se que os índios bebiam chocolate com pimenta-do-reino e muito urucum. É ai que o cozinheiro pára o olho, larga o livro e fica imaginando se não seria bom derreter uma barra de cobertura e misturar com pimenta-rosa, que é fragrante. Não, talvez ficasse melhor com chocolate amargo. Pimenta-do-reino verde também é ótimo com chocolate e nada contra uma malagueta vermelha cortada em pedaços mínimos dando um pique explosivo a uma trufa doce. E na beira do fogão a trufa caseira (1) é feita em minutos só para testar aqui e agora a idéia fascinante da mistura de contrários.
Mas é então que a história recente se intromete. Na hora de experimentar a trufa bate a Culpa. Nos anos 90 não se pode comer um chocolate sem culpa. Unzinho, só? Quebra ou não quebra o Jejum, o Regime, a Dieta? Quebra. Nos 90, quebra. Nos 50 uma mulher parada frente a umas trufas era alguém "en train" de comer um chocolate e oferecê-lo à família. Comer chocolate nos anos 50 -talvez a única coisa que não fosse pecado.
As meninas redondas, de cintura de vespa, sentiam uma culpa dos infernos se beijavam o namorado. Pecavam no sábado e se confessavam no domingo. O pecado era o sexo. Mère Maria da Cruz, das saias farfalhantes e olhos verdes agudos cairia morta ao ver que o pecado migrou para o estômago. O manual de edificação mais vendido (2) falava no assédio do pecado, na necessidade de obstinação, decisão, dos pequenos sacrifícios, das grandes conquistas. Era, sem tirar nem pôr, um folheto dos Vigilantes do Peso, só que se construía a alma. Nos 50 o pecado engravidava, nos 90 engorda. Íamos à missa, vamos à Academia. O chocolate é o Mal, a alface o Bem. Cada mordida no bombom nos afasta da salvação. O Cristo continua pregado na cruz e de suas chagas escorre um líquido pegajoso da cor de chocolate. Quantos anos, quantos gurus, quantas revoluções para podermos comer de novo a trufa gorda?
Não nos venham com spas, com esteiras, bicicletas, não queremos dieta nem abdominais. Queremos de volta o ritual de desembrulhar o chocolate, amassar o papel, agradecer a vida, desfrutar o prazer calmo de uma fileira de Bis. Modernos, contemporâneos, exigimos o bombom politicamente correto, bom para todos.
Clamamos por um Baci orgânico, ético, biodiversificado, um Sonho de valsa eco-choco-chato, mas é chocolate que queremos comer! E, almas satisfeitas, centros restabelecidos, desejos equilibrados, desconfio, ah, como desconfio, teremos de volta a cintura de pilão do 50, sem ônus, sem luta, coberta de chocolate.

NOTAS
1. "Trufa Caseira", em Nina Horta, "Não É Sopa" (Cia. das Letras).
2. "A Formação da Donzela", José P. Baeteman (Vozes).

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