São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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Um purgatório temporário

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sir Walter Scott, resenhando "Emma" em 1815, comparou estranhamente Jane Austen aos mestres flamengos da pintura, presumivelmente pela precisão na representação dos personagens. O que é estranho foi Scott não ter visto o quanto Austen era inglesa. Para mim, como crítico americano, "Emma" parece o mais inglês dos romances ingleses e, sem sombra de dúvida, um dos melhores. Mais do que "Orgulho e Preconceito", é a obra-prima da autora. De todas as profecias sobre a sorte de sua obra, nenhuma foi menos correta do que o comentário da própria Austen sobre este livro -de quem, pensava ela, "ninguém, exceto eu, há de gostar".
Aparte muitas outras coisas, Emma é uma figura imensamente atraente para nós, porque dona de uma imaginação extraordinária, perigosa e equivocada como frequentemente parece, tanto para os outros quanto, afinal, para si mesma.
Como a Clarissa Harlowe, de Richardson, antes dela, e as mais fortes dentre as heroínas de George Eliot e Henry James, depois, Emma Woodhouse tem uma vontade heróica e, como elas, aceita o risco de identificar vontade e imaginação. Do ponto de vista social, uma identificação dessas é algo de catastrófico, já que a vontade protestante tem a tendência de hierarquizar os outros, e hierarquias dessa ordem podem acabar se revelando mera fantasmagoria.
G. Armour Craig observa bem que "a sociedade, em 'Emma', não é uma escada, mas uma rede de imputações, vinculando sentimento e conduta". Emma, de sua parte, faz imputações mais livres do que a rede seria capaz de sustentar e, até atingir a iluminação, não se cansa de ameaçar a existência de vínculos estáveis entre sentimento e conduta.
Se Emma Woodhouse é tão cara a Jane Austen, isso é porque seus erros são os de uma imaginação profunda e nascem de um movimento irresistível da vontade rumo à autonomia. Mas Austen não nos dá a tragédia e sim uma grande comédia da vontade, onde sua heroína deve encarná-la na mais alta potência, não importa quão mal empregada possa ser, em certas ocasiões.
Talvez não seja possível definir as qualidades que fazem de Emma uma figura comparável à Gwendolen Harleth de George Eliot (em "Daniel Deronda"), ou à Isabel Archer do "Retrato de uma Senhora", de Henry James.
A pura comédia do contexto em que vive parece um universo mais do que suficiente para ela. Com sua habilidade suprema, Jane Austen é capaz até de nos persuadir de que o casamento com o sr. Knightley será o bastante para satisfazer uma Emma, por ora, perfeitamente gentil. Ou será que não?
Se as heroínas da vontade protestante, desde a Clarissa Harlowe, de Richardson, no século 18, até a Clarissa Dalloway, de Virginia Woolf, jamais conseguem encontrar um parceiro à altura, é porque vontades não se casam.
A alegoria, ou ironia trágica desse dilema, já está presente explicitamente em "Clarissa" (1749), uma vez que o rufião Lovelace, com toda sua força e esplendor, teria sido, de fato, o verdadeiro par de Clarissa, não fora a sua esqualidez moral. Seu lamento de morte -"que isto nos sirva de expiação!"- não é expiação alguma e só ajuda a estabelecer uma longa tradição do romance anglo-americano, na qual as heroínas da vontade estão fadadas a sofrer seja calamidades completas, seja uniões felizes, com homens tão bons e desinteressantes como o sr. Knightley de "Emma", ou Will Ladislaw, em "Middlemarch" (de George Eliot).
Quando George Eliot se vê reduzida a fazer com que a fascinante Gwendolen Harleth se apaixone por aquele príncipe dos pedantes, Daniel Deronda, não há, da nossa parte, o que fazer, senão resignar-se às dores da sobredeterminação literária. Lovelace ou Daniel Deronda? Não conheço uma única mulher de espírito forte que não prefira o primeiro -mas não para marido!
"Emma" é um romance cheio de grandiosas epifanias cômicas, dentre as quais minha predileta está no volume 3, capítulo 11, quando Emma recebe o choque da revelação de Harriet (de que o sr. Knightley é o objeto das esperanças de Harriet). O prazer estético desta cena vem do contraponto entre o grito espontâneo de Emma -"Ah, meu Deus! Que eu jamais tivesse visto essa mulher!"- e o toque cômico raro da descrição seguinte: "Sentou-se imóvel, caminhou de um lado a outro, tentou seu quarto, tentou o jardim -em cada lugar, cada pose, percebia que tinha agido de forma muito fraca".
A humilhação de Emma não poderia ter sido melhor expressa do que por esses "tentou o jardim" e "cada pose". Dona de uma imaginação infinita, Emma agora deve submeter-se à mortificação de se ver reduzida aos lugares e poses de alguém encurralado pelo colapso de suas visões, que vêm se revelar ilusórias. Mas Jane Austen, que, ao que tudo indica, identificava-se a Emma, escolheu sabiamente fazer deste momento de reversão irônica um purgatório temporário, em vez de uma pena infernal.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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