São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A tentação do clichê

ANDRÉ LARA RESENDE

Passo sempre os olhos no "Painel do Leitor". A frequência com que se protesta contra o "neoliberalismo" é impressionante. É possível que o "Painel" não seja uma amostra representativa: quem se dá ao trabalho de escrever para o jornal pode não ser o senhor João-Todo-Mundo e o critério de seleção das cartas publicadas pode estar sujeito a algum viés.
De toda forma, não há dúvida que "neoliberal" tornou-se a ofensa síntese dos que se pretendem oposição a "tudo isso que está aí".
Um interessante artigo no último número da "The Economist" observa que uma das maiores ofensas hoje a um político americano é chamá-lo de liberal. Curioso é que o sentido do termo para os americanos é justamente o inverso do sentido que lhe é dado aqui.
Nos Estados Unidos, liberal é o oposto de conservador: alguém que é a favor do Estado abrangente, das grandes despesas públicas sociais e de muitos impostos para financiá-las -em síntese, alguém disposto a restringir certas liberdades individuais em nome do bem comum.
Na Europa, a palavra tem um sentido bem mais próximo ao do que por aqui se convencionou chamar de neoliberalismo. Um liberal, para o europeu, é a favor do Estado restrito e dá prioridade às liberdades individuais em detrimento dos supostos interesses da sociedade. Assim como aqui se usa neoliberalismo como o antônimo de uma política voltada para a equidade e a justiça social, o liberal europeu é mais próximo do que se poderia chamar de um conservador do que do socialista.
A história das idéias dá precedência ao sentido europeu do termo. A verdade, contudo, é que liberalismo em filosofia política é muitas vezes algo tão abrangente que parece tudo englobar e, assim sendo, nada significar. A tese da "The Economist", entretanto, é que apesar disso, ou justamente por isso, continua importante compreender e defender o que significa.
O liberalismo de Locke, Bentham e Mill está na raiz da democracia moderna. A sociedade liberal, como originalmente concebida, procura garantir a liberdade de credo, a liberdade de expressão, a liberdade de propriedade, a liberdade contra a coerção, contra os governos ilegítimos e assim por diante.
Somos todos, portanto, embora pareçamos tê-lo esquecido, liberais clássicos.
O liberalismo sempre reconheceu a necessidade de impor limites às liberdades individuais. A formulação original de Stuart Mill continua válida: a força só se justifica para evitar danos a terceiros e não pode ser invocada em nome da defesa do próprio indivíduo. É evidente que a aplicação desse princípio pode dar margem a diferentes interpretações.
Onde está a linha demarcatória? O Estado deve ser apenas o vigia garantidor da propriedade e dos contratos ou deve garantir certas liberdades positivas como o direito à saúde e à educação? Não deveria o Estado garantir também um nível mínimo de equidade? Começamos a entrar rapidamente em terreno controverso.
O tema é complexo e fascinante. Merece tratamento mais sério do que o que tem sido dado no debate político aqui e alhures. Antes de mais nada é preciso resgatar o sentido das palavras e evitar a tentação de substituir a reflexão pelo chavão e pela palavra de ordem.

Texto Anterior: 1996 _poeira de idéias
Próximo Texto: Uma assembléia produtiva
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.