São Paulo, sexta-feira, 2 de fevereiro de 1996
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Saramago quer 'Carta de Deveres Humanos'

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

O escritor português José Saramago, 73, falou muito mais de política que de literatura em sua palestra de anteontem à noite no Masp. O tema da palestra, promovida pela Folha e Companhia das Letras, foi "Portugal: Fim de Milênio, Princípio de Quê?".
As mais de 500 pessoas que superlotaram o auditório do Masp ouviram o escritor criticar o processo de integração de Portugal à União Européia, vista por ele como a forma atual em que se manifesta a "subalternidade estrutural" da sociedade portuguesa.
Saramago criticou os "idealistas messiânicos, para os quais é indiferente o que Portugal venha a ser, desde que seja", e "os pragmáticos, que querem comprar a qualquer preço o 'prêt-à-porter' europeu onde o corpo português deverá entrar à força".
Para ilustrar suas afirmações sobre o desprezo da Europa com relação a Portugal, o escritor contou um episódio que arrancou risos da platéia. Disse que viajava de trem pela Europa na mesma cabine que quatro funcionários do então Mercado Comum Europeu. Quando estes lhe perguntaram sua nacionalidade, ele lhes propôs que a adivinhassem.
Informou aos funcionários o regime político, a população, a religião, a origem da língua, a topografia e a extensão territorial de seu país, e os homens não adivinharam. "Durante meia hora, fui italiano, húngaro, romeno, albanês, tudo quanto é possível ser na Europa, menos português. Percebi que aqueles homens não viam Portugal no mapa da Europa."
Ao concluir o relato, Saramago disse acreditar que "hoje, por obra da nossa adesão à União Européia, a Europa já sabe onde está Portugal, mas mantenho a dúvida de que saiba o que Portugal é".
O autor de "A Jangada de Pedra" fez um paralelo entre o Mercosul e a União Européia, alertando para os riscos semelhantes dos dois processos de integração. Declarou que o progresso de países como Portugal e o Brasil depende do " apuramento de amplas capacidades de auto-renovação e não da adoção de modelos alheios que no final das contas muito mais servem a alheios interesses".
Terminada sua exposição, o escritor respondeu perguntas da platéia, umas sobre política, outras sobre literatura, outras ainda sobre ética e religião.
Falou até de horóscopo: "Vejo que falam sempre da influência de Saturno, da Lua, do Sol, e nunca falam da influência da Terra, que afinal de contas é a que está mais perto da sola dos nossos pés".
Criticou duramente o neoliberalismo -"O neoliberalismo é mau porque é inumano, porque coloca o lucro acima de qualquer outro valor"- e sua adoção na América Latina, "onde as desigualdades sociais são tremendas". Perguntou à platéia quanto é o salário mínimo no país. Diante da resposta, voltou a provocar gargalhadas: "E quanto é o salário máximo?"
Várias perguntas foram sobre o mais recente romance do escritor, "Ensaio sobre a Cegueira". Ao responder a uma delas, Saramago declarou: "Existe a 'Carta dos Direitos Humanos'. Onde está a 'Carta dos Deveres Humanos'? Falo sobre o dever da tolerância, o dever da solidariedade."
Ao final, aplaudidíssimo e emocionado, o autor teve de dar dezenas de autógrafos.

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