São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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O animal que vira humano

GILBERTO DIMENSTEIN

Tradicional bico de estudantes nos EUA, uma baby-sitter cobra US$ 10 por hora em Nova York. No final do mês, se trabalhar bem, fatura US$ 1.000. Melhor negócio, porém, é ser babá de cachorro.
Passear uma hora com um cachorro sai, em Nova York, pelo mesmo preço, sem choro, birra, comida recusada ou cuspida. O "dog-sitter" pode até se distrair vendo vitrines de lojas e, ao mesmo tempo, manter a forma física.
Aparentemente injustos, esses preços são reflexo direto do mercado. O número de cachorros (54 milhões) está quase empatando com o número de crianças menores de 14 anos (57 milhões).
Além dos cães, o país tem 63 milhões de gatos, girando US$ 17 bilhões anualmente no mercado do animal de estimação -para ter uma idéia desse dinheiro, daria um reforço de cerca US$ 100 mensais para 14 milhões de famílias brasileiras, eliminando qualquer vestígio de indigência.
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A paixão pelos animais de estimação gera toda uma linha de produtos: pasta de dente e sucrilhos com gosto de carne. Até água mineral com sabor de peixe criaram para gatos.
Surgem spas destinados especialmente para eles perderem peso.
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Não vi nada mais exótico do que um projeto de hotel para cães e gatos, em Louisville, no Estado de Kentucky. Vai ter suíte presidencial, TV com vídeo e luz de candelabros.
Um dos quartos vai ter um átrio com tucanos voando entre bananeiras e palmeiras.
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No país das pesquisas médicas, cientistas garantem que cães e gatos fazem bem para pressão alta, reduzem o estresse e, assim, ajudam o coração.
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Um artigo publicado na revista da Sociedade de Psicologia do Reino Unido relata, com base em entrevistas, que a perda do cachorro equivale para muitas pessoas à morte de um parente -não raro, entram em depressão e pensam em suicídio.
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Cirurgiões veterinários nos Estados Unidos revelam que muitos de seus clientes dizem preferir a morte do marido ou da mulher à do animal.
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A revista cita o caso de um veterinário que perdeu seu cachorro, não suportou e tomou uma injeção com veneno.
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Os americanos estão cada vez mais solitários e buscam no animal de estimação consolo da ausência de contato humano.
De acordo com o último censo, um em cada quatro adultos vive sozinho: acima dos 65 anos, são 9,2 milhões.
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Durante a viagem para Índia, o presidente Fernando Henrique Cardoso jurou que não participaria das eleições municipais. Mal desembarcou, começou a articular a candidatura de Sérgio Motta à Prefeitura de São Paulo.
Estivesse cercado de mais conselheiros sinceros e menos bajuladores (o que é difícil na vida palaciana), ele preservaria sua imagem de governante acima das disputas eleitorais e lhe daria mais credibilidade para exigir sacrifícios da nação.
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Serão inevitáveis as acusações de uso da máquina, respingando no Palácio do Planalto.
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Na coluna de domingo passado, chamei de provincianismo e falta de assunto atacar o presidente Fernando Henrique Cardoso por suas viagens ao exterior. Considero positivo um governante usar de sua boa imagem internacional e tentar abrir mercados.
Recebi correspondências desconfiando do elogio e considerando essa posição sinal de governismo.
Minha posição: o leitor faz bem de desconfiar de elogios a governos.
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Os jornalistas (e este colunista não está fora) devem receber a mesma desconfiança destinadas aos políticos. Informação é poder e poder é manipulação.
Para termos fontes de informação, muito vezes nos tornamos amenos diante deste ou aquele personagem do poder econômico ou político.
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Mas também se deve desconfiar do estilo oposição. É comum procurar um pretexto para dar pancada, passando a imagem de coragem e ousadia. Mas, nos dias de hoje, bater em governantes é tão arriscado e corajoso como roubar o pirulito de um menino.
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Na média, jornalistas e políticos tentam satisfazer os eleitores e leitores, fontes de sua sobrevivência. Pesquisas que orientam candidatos sobre os gostos do eleitor orientam jornalistas sobre as tendências do leitor.
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Nesse jogo da informação, ganha mais quem desconfia menos. Como já disse aqui, a Folha tem a vantagem de dispor de um ombudsman, cujo resultado final é excelente para o leitor, ao gerar uma positiva tensão na redação.
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Mas nem o ombudsman em qualquer jornal está acima de suspeitas. Ele é retirado do anomimato, ganha destaque por tempo determinado, não por suas reportagens ou feitos jornalísticos, mas pelo direito de criticar o jornal (críticas muitas vezes corretas, justas e construtivas).
Encerrado o mandato, volta à redação, convivendo com os colegas que criticou, mas, pior, implicitamente desafiado a produzir as excelências que exigiu tão ardentemente em seus comentários. É como se um exigente técnico voltasse a ser escalado para entrar em campo.
O conflito entre anomimato e notoriedade por tempo determinado, necessidade de provar que consegue colocar em prática o que defendeu, acaba produzindo pressão psicológica -e, natural, carrega o risco de se infiltrar na crítica.
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Feitas todas essas considerações, podem me chamar de governista, mas se o jornalista não deixar claro ao leitor que, apesar de todos os problemas e falhas (que são muitas), o Brasil melhora, está mentindo ou desinformado.

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