São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Depois de Newton

JESUS DE PAULA ASSIS

Newton e a Consciência Européia
Paolo Casini
Tradução: Roberto Leal Ferreira
Unesp, 253 págs.
R$ 25,00

A idéia popular do cientista é forjada principalmente pela ficção. Entre os poucos casos de cientistas reais cuja imagem gravou alguma coisa na consciência leiga, estão Marie Curie, Albert Einstein e, claro, Isaac Newton (1). Um newtoniólogo já sugeriu que, à época de sua morte, Newton seria o equivalente a um cientista de hoje que, "começando em 1900, tivesse feito o trabalho fundamental de Einstein, Planck, Bohr, Schrõdinger e muito do de Rutherford... e, por volta de 1930, tivesse se tornado presidente do Banco da Inglaterra" (2).
De fato, não existe hoje um herói científico como o foi Newton no século 18. A ciência burocratizada, a rígida distribuição de trabalho no meio acadêmico, a especialização extrema dos pesquisadores profissionais não permitem que surja alguém que domine toda a física, toda a matemática e todos os procedimentos experimentais de que precisa para levar adiante suas pesquisas.
Daí decorre o fato de Newton ter tido tão grande impacto sobre a cultura ocidental. Dizer que teve grande impacto sobre a física é trivial. Mesmo face a dificuldades experimentais, a mecânica newtoniana reinou solitária por quase dois séculos e seus procedimentos e equações fundamentais permanecem sendo usados nas áreas nas quais não se levam em consideração massas e velocidades muito fora da experiência cotidiana. Newton, enfim, é o cientista que codificou para sempre a experiência física comum, em um sistema de grande simplicidade e elegância.
Mas esse sistema do mundo, desde há muito colocado como questão de fato em manuais escolares, teve de ser estabelecido contra outro grande sistema explicativo dos fenômenos físicos, a mecânica cartesiana, e esse trabalho absorveu grandes mentes do século 18, como D'Alembert, Voltaire, Diderot, Maupertuis, somente para citar os mais conhecidos, cujos trabalhos sobreviveram de alguma forma até o presente. É sobre o trabalho de alguns desses homens que o historiador Paolo Casini dedica sete dos oito capítulos de seu "Newton e a Consciência Européia".
O título do livro se mostra enganador conforme a leitura prossegue. O que o autor quer dizer, de fato, com o termo "consciência"? À pág. 9, uma luz: a idéia é "registrar as várias reações que a ciência de Newton impõe à reflexão e à imaginação" e, assim, "fazer uma arqueologia interdisciplinar do conhecimento". Aparentemente, está-se diante de um projeto que pretende registrar as diferentes influências que Newton exerceu sobre a imaginação européia. Naturalmente, um gênio tão grande e uma divulgação tão ampla não permitiram que a mesma imagem chegasse perfeita a todos os potenciais influenciáveis pelo newtonianismo. Houve a influência direta e clara e a influência indireta, na qual conceitos newtonianos apareceram com toda sorte de misturas e mal-entendidos. Consciências foram forjadas a partir desse amálgama de informações coesas ou desencontradas e o resultado foi a formação de um certo espírito de época.
O espírito de hoje com relação à ciência pode ser considerado o resultado de uma longa e bem-sucedida articulação de todos os envolvidos em atividades científicas. Pode-se observá-lo nas reações que desperta o termo "ciência". Existe um estado de espírito geral quanto ao caráter positivo da palavra, chegando ao paradoxo da "astrologia científica" ou dos "métodos científicos" para se cortar o cabelo, arranjar amantes etc. Embora a maioria das pessoas desconheça quase inteiramente o que o termo signifique, o fato é que todos estão dispostos a apoiar o que esteja acompanhado dele. Mesmo a tal voga irracionalista deste fim de século usa retórica científica, ao sugerir alternativas à ciência em termos de maior eficiência, aumento de qualidade, obtenção facilitada de resultados etc. Enfim, a retórica científica venceu e se tornou popular, fenômeno que não quer dizer que a ciência (a atividade) tenha se tornado melhor compreendida. A disposição geral se formou, como no caso do newtonianismo (fora das universidades), em torno de conceitos nem sempre claros, de atitudes nem sempre críticas.
Pelo eixo da arqueologia interdisciplinar, Casini estaria então preparando o leitor para um mergulho no século 18, o Século das Luzes, cujos "philosophes" foram tão influenciados por Newton a ponto de Montesquieu pretender uma "física moral" ou de a "Enciclopédia" tentar sistematizar todo o conhecimento disponível tendo em vista um projeto newtoniano de respeito irrestrito à razão devidamente guiada pela experimentação, na linha de "não faço hipóteses".
Vêm então ensaios sobre Maupertuis, Voltaire, Diderot, Boscovich, Kant e newtonianos italianos do século 18. Nada sobre literatura ou artes plásticas, nada sobre Blake, nada sobre o teatro, nada sobre poesia. Ou seja, "consciência" se aplica apenas aos indivíduos que entenderam bem e levaram adiante o projeto newtoniano de uma nova ciência física. Na pág. 220, portanto quase no fim do livro, lê-se então que "a inépcia e a grande servidão dessas mentes -que se notam nas divagações de inúmeros literatos, jornalistas e poetastros- não merecem figurar numa pesquisa dedicada a reconstruir a circulação das idéias". O projeto de Casini é, portanto, fazer "uma arqueologia interdisciplinar do conhecimento" (como se lê no "Prólogo"), mas não do conhecimento em geral e sim daquele ligado mais diretamente à física. A opção é, de qualquer forma, justa; já escolhê-la com base em um simples "não merecem figurar", não.
Esclarecido o que o autor tem na verdade como projeto e deixando de lado qualquer pretensão de entender amplamente o newtonianismo fora dos círculos acadêmicos, o livro de Casini deixa-se então ler como uma história da ciência centrada no século 18 e, particularmente, na difícil tarefa dos físicos newtonianos para convencer seus pares de que era chegada a hora de se abandonar Descartes em favor de uma nova visão do universo.
O início do século 20 assistiu a uma transição drástica de "paradigma" em física. Foi necessário primeiro abandonar a idéia de que certas grandezas -como a energia- são contínuas e, depois, de que velocidades podem compor-se aditivamente em qualquer situação. Mas, nesse caso, estava já bem estabelecida uma ciência física e, por mais que se queira ver cortes e descontinuidades que teriam exigido escolhas irracionais entre os paradigmas competidores, o fato é que muito havia de comum entre defensores e adversários de qualquer teoria.
O mesmo não se pode dizer da física newtoniana no correr do século 18. A mecânica dos vórtices de Descartes era mais do que hoje se entende por física: era um sistema do universo, uma conquista da razão solitária, uma evidência da existência de Deus. Os adversários do cartesianismo tinham de não apenas convencer seus pares da pertinência da nova física, mas também da impertinência de se manterem juntas física e filosofia ou, nos termos da época, física e metafísica.
Além disso, a mecânica newtoniana implicava a aceitação do sistema heliocêntrico e das leis de Kepler, ainda interditadas pela Igreja. Casini explora a retórica cuidadosa dos intelectuais ligados à Igreja -especialmente Boscovich- para manter o newtonianismo apenas como hipótese de trabalho, em claro confronto com o lema de Newton quanto a não fazer hipóteses jamais. As tortuosas argumentações nascidas da pressão eclesiástica podem ter atrasado aqui e ali o desenvolvimento da física moderna, mas tiveram um papel importante: obrigaram pensadores a articular todos os sutis meandros das obras de Newton, a explorar todas as implicações do sistema. A esse propósito, John Ziman já especulou que a inexistência na China e na Índia de uma ciência comparável à ocidental pode ter sido resultado da tolerância (3). A intransigência tem lá suas virtudes.
Em ambientes mais tolerantes, a disputa se concentrava em torno de como arranjar uma experiência que testasse os dois sistemas -newtoniano e cartesiano- ao mesmo tempo e permitisse de forma inequívoca que se aceitasse um e se descartasse integralmente o outro -o cartesiano. Essa oportunidade apareceu com a medida dos meridianos em direção ao pólo norte. A teoria de Newton previa que a Terra devia ser achatada em direção ao pólo e, portanto, que os meridianos deveriam ser mais longos, dado um mesmo arco. A teoria cartesiana previa o oposto. Desnecessário dizer qual se mostrou correta. Esse foi o trabalho de Maupertuis, a quem é dedicado um ensaio no livro. Mas a experiência bem-sucedida não foi suficiente para trazer Newton de vez para o continente europeu. O cartesianismo ainda precisaria ser golpeado por penas com as de Voltaire ou de Diderot.
Depois de toda controvérsia e eliminados os últimos redutos cartesianos, Newton reinou sozinho por mais de um século. Nesse período, suas idéias penetraram profundamente na cultura e geraram toda espécie de reações. Especialmente nas artes, elas não foram favoráveis. Basta lembrar do impassível e frio Newton de William Blake ou que "500 Newtons seriam necessários para produzir um Shakespeare ... (e que sua) teoria é extremamente superficial a ponto de não ser impróprio chamá-la de falsa", nas palavras de um irritado Coleridge. Sejam tais reações resultado de apreensão parcial ou de completa falta de entendimento do assunto -ou, quem sabe, de alguma compreensão profunda-, permanece o fato de que elas perduraram, ramificaram-se e se estenderam muito além dos círculos especializados, encontrando eco até hoje no assim chamado choque das "Duas Culturas". Mas isso não é, para Casini, foco digno de atenção.

NOTAS
1. Roslynn Haynes, "From Faust to Strangelove, Representations of the Scientist in Western Literature", Johns Hopkins University Press, 1994.
2. E. C. Andrade, citado em Haynes, págs. 56-57.
3. John Ziman, "Public Knowledge", Cambridge University Press, 1968, capítulo 2.

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