São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Nuvem envolveu Elizabeth Bishop e Lota

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Solar das Lajes, Ouro Preto. Na descida para a cidade, via a casa de Bishop. Fechada, cheia de mistérios. Uma de suas biógrafas, Lorrie Goldensohn, passou por aqui e achou poemas inéditos dentro de uma caixa de sapato: "É maravilhoso acordar juntos/ no mesmo minuto; maravilhoso ouvir/ a chuva começar subitamente sobre o telhado..."
Biografias, cartas completas, um livro em português sobre Lota e Elizabeth Bishop, tanta informação e, no entanto, sigo lendo o que me cai às mãos como se houvesse mesmo um segredo a ser revelado pelo texto. Samambaia, Petrópolis. Bishop começa a escrever uma carta no momento em que uma nuvem entra dentro de casa. A nuvem retorna num de seus versos:
"Casa, casa aberta
ao orvalho transparente
e à aurora opalina
afável ao olhar
e ao congraçamento
mariposas enormes
com toda uma parede
para o mapa iletrado do bolor
o vapor
escala a vegetação espessa sem esforço, volta-se
e envolve ambas,
casa e rocha,
numa nuvem particular"
Uma nuvem dentro de casa é a imagem que tenho dos quase 20 anos que Bishop passou pelo Brasil, tempo marcado por sua relação com Lota Macedo Soares que se suicidou em Nova York, em setembro de 67.
Era uma casa no meio do mato e elas subiam para Petrópolis num Jaguar esporte, o verde era mais intenso, look those flowers, the Maria sem-vergonha. A nuvem particular ficou para mim como um símbolo ambíguo da integração no mundo, bichos, flores, matos, água de riacho, mas um presságio no horizonte.
Às vezes, as amantes estão absortas no cotidiano, tirando dele as rimas e o próprio encanto da vida. Bishop prometeu fazer um peru e descobre que trouxeram um vivo e o amarraram na mesa da cozinha. Assusta-se mas as empregadas começam a dar cachaça para o bicho. Pelo menos, morrera bêbado.
Objetos, que abundam nos poemas americanos, aqui vão dando lugar, lentamente, aos bichos, aos servidores da casa, transfigurados pelo olhar amoroso da escritora, como o jardineiro Manuelzinho:
"E um dia berrei tão alto
que era para você ir correndo
e me trazer aquelas batatas
que seu chapéu voou e você saltou dos tamancos
deixando três objetos dispostos
em triângulo aos meus pés,
como se o tempo todo você tivesse sido um jardineiro de conto de fadas
e à palavra 'batatas'
sumisse para retomar as atividades
Bishop escreveu que o Rio não era uma cidade maravilhosa. Apenas o cenário para uma cidade maravilhosa. Lota resolveu transformar o Rio, criando o Parque do Flamengo, brigando com a burocracia, envolvendo-se tão profundamente com seu sonho urbanístico que acabou adoecendo e se matando.
O livro de Carmem L. Oliveira, "Flores Raras e Banalíssimas" abre-se para duas possíveis causas da morte de Lota. Numa delas, Lota foi morta pela mediocridade brasileira; na outra, pelo desgaste na relação com Bishop.
Como descobrir isso agora, passados tantos anos? Melhor talvez concentrar nossas energias no bem que nos fizeram: Lota com sua concepção revolucionária do espaço urbano, Bishop com seus poemas, livros sobre o Brasil, tradução do clássico de Helena Morley e essa deliciosa mistura de palavras brasileiras e inglesas -"To the botequim and back".
Sinto que poderiam ter sido apenas felizes, que muitas de suas angústias talvez nem existissem no mundo de hoje. Mas assim são nossos heróis. Enfrentam a escuridão com os limites e nisso está toda a graça de sua história.
Sentimentalmente, nem as cartas nem os livros mostram o ponto de transição através do qual Lota, que amparou Elizabeth, construiu um estúdio para ela e parecendo protegê-la de todos os males, sobretudo do álcool, percebeu que não poderia viver sem ela.
Essa virada em que o protetor sem a protegida encontra sua própria fragilidade, decai e morre é um grande elemento dramático dos 15 anos de vida amorosa que são também uma referência do Brasil pré-golpe militar e, principalmente, o mais profundo e enriquecedor encontro que as duas culturas -brasileira e norte-americana- conheceram ao longo de toda a sua história.
"Ó diferença que mata
ou intimida tanto
nossa vidinha pacata nas sombras"

Livro: Flores Raras e Banalíssimas
De: Carmem L. Oliveira Lançamento: Rocco

Livro: Elizabeth Bishop - The Biografy of a Poetry De: Lorrie Goldensohn
Lançamento: Columbia University Press

Livro: One Art (Selected and Edited by Robert Giraux)
Lançamento: Farrar-Straus-Giroux

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