São Paulo, quinta-feira, 8 de fevereiro de 1996
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Confissões de um macaco

OTAVIO FRIAS FILHO

Um publicitário famoso declarou recentemente que toda publicidade é mentirosa. Ao glamurizar, ela já falseia. Sua declaração foi um avanço importante porque há décadas o discurso publicitário tenta tapar o sol com a peneira, insistindo no contrário. Um advogado, por exemplo, não escolhe seu cliente por ele falar a verdade, mas porque tem direitos a serem protegidos.
Se o militar mente por dever de ofício, se o jornalista mente até quando não quer, se o pedagogo mente para não ser imoral, se o médico e o padre mentem por caridade, por que esperar que justo o publicitário seja o único louco a falar a verdade? E no entanto ele é. Por uma diabrura da ideologia, a verdade se infiltra na mentira publicitária e fica ali latente, como num sonho, à espera de decifração.
A nossa época é tão rasa e grosseira que a camuflagem se mostra cada vez mais negligente, ou talvez menos eficaz. A verdade irrompe em mil lugares, como no mito do garoto holandês tentando evitar, com os dedos, que a barragem vaze. Dizer que a publicidade é mentirosa de certa forma a nobilita, ela se desloca para as vizinhanças elegantes da arte, que sempre reivindicou a mentira.
Removida, porém, toda censura política, moral etc. a publicidade não consegue mais mentir, para decepção dos publicitários, que já se comportavam como autênticos pintores de Montmartre. Considere o caso exemplar, maravilhoso por tudo o que revela à luz do dia, do anúncio da Pepsi contra a Coca-Cola, objeto de um litígio entre as marcas no Conar, o tribunal privado da propaganda.
Todo mundo conhece o enredo: uma pesquisa "antropológica" (antropológica?) é feita com dois macacos, obrigados a ingerir Coca e Pepsi. Macaco 1, como não poderia deixar de ser, toma Coca; Macaco 2, pois a Pepsi é "alternativa", vai de Pepsi. Os resultados obtidos com Macaco 1 são prodigiosos: ele aparece afixando, com destreza de operário-padrão, seus pinos coloridos num encaixe.
Já Macaco 2 sumiu. Toca o celular e é ele, óculos escuros a bordo de um jipe na praia, cercado de garotas e latas de Pepsi. A Coca tentou impugnar, alegando que o comercial era ofensivo a seus consumidores. Mas como, se Macaco 1 melhorou, ficou mais inteligente, mais apto, somos tentados a dizer, até, um elemento útil à sociedade?
Toda humanização dos animais traduz um desejo de animalizar os humanos; por isso as crianças, por exemplo, adoram bichos que falam, ou seja, adultos de quem elas pudessem fazer gato e sapato. A publicidade da Pepsi não é ofensiva para os consumidores da Coca, mas para todo o gênero humano; seria preciso um promotor do próprio Homo sapiens para confrontar o advogado Saulo Ramos.
O que o anúncio diz é: na sociedade de mercado somos todos macacos, nossas reações são mecânicas, nossas opções são aleatórias e imitativas, nossa vida é darwinista. Quer adotemos o estilo "integrado" ou "alienado" somos macacos. Como nosso produto é B, paródico, derivado, tardio, queremos associá-lo, dá licença, ao segundo estilo. É verdade demais para aquela que deveria ser a mais mentirosa das profissões.

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