São Paulo, quarta-feira, 14 de fevereiro de 1996
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Educação trabalha com seres mutantes

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tempo de volta às aulas, que quando eu era criança sempre se celebrava com os anúncios do Mappin: sapato Vulcabrás, a tantos cruzeiros... apontador marca Periquito, tantos centavos. As borrachas Mamute eram as melhores, talvez porque fossem capazes de apagar erros dignos de um Neanderthal. A infância é nossa pré-história. Lembro-me até de usar fixador de cabelo: funcionava no começo do dia, mas no final da tarde se pulverizava, seco, e o cabelo se organizava então em pequenas lâminas longitudinais, separadas umas das outras, que era gostoso desfazer.
Não importa; escrevi o suficente sobre os tempos de escola -a chatice, os incômodos morais- num livro para crianças, "A Professora de Desenho", editado pela Companhia das Letrinhas. Como toda pessoa que vai ficando menos jovem, os tempos atuais me escandalizam, e maior escândalo não há, nesse assunto de aulas e colégios, do que o programa "Passa ou Repassa", transmitido todas as tardes pelo SBT.
Se você acha que a educação está em crise, que a juventude hoje em dia está imbecilizada etc., experimente ver o programa. As coisas são muito piores do que você está pensando.
A apresentadora Angélica é quem comanda, com otimismo indestrutível e aeróbico, o festival de imbecilidades que aparece em cena.
Dois colégios disputam provas de conhecimentos gerais e também outras provas, do tipo "Olimpíadas do Faustão" numa versão light.
São garotos e garotas de uns quinze ou dezesseis anos, com dentes sadios, sem nenhum problema aparente de alimentação em casa. O programa que eu vi, segunda-feira passada, confrontava alunos do Colégio 11 de Agosto, do Mandaqui, e alunos do Colégio Carlos Drummond de Andrade, da Ponte Rasa. Fisicamente, não havia ninguém miserável nas equipes. Não sei se eram colégios particulares ou públicos.
Havia, então, um jogo de perguntas e respostas. Vejamos as perguntas e as respostas. A primeira pergunta era difícil. "Qual o nome de uma raça de cachorros que é ao mesmo tempo o nome de um país europeu cuja capital é Copenhague?" Nenhum dos representantes dos colégios soube responder.
Outra pergunta: "Qual o nome de um personagem de histórias em quadrinhos, amigo do Snoopy, que também é chamado de Minduim?" Ninguém sabia. Mais uma: "Bolívia e Paraguai são países banhados por qual oceano: Atlântico, Pacífico, ou nenhum?" Um rapaz deu a resposta: "Pacífico". Resposta errada, pois o certo é: "nenhum".
Mas o melhor veio depois. Duas perguntas antológicas, com respostas inacreditáveis. Primeira: "O que é que a lavadeira faz com a roupa que é o que o torcedor faz quando vai ao estádio?" Resposta da menina: "Lava a roupa". Angélica corrigiu: não, um torcedor quando vai ao estádio não lava a roupa, ele torce. Segunda pergunta: "Quem é loiro no desenho animado: o Fred ou o Barney?" Resposta: "o Simpson". Aí a própria Angélica se espantou. Disse que a menina deve ter ficado nervosa.
Tudo bem. Quem ficou nervoso fui eu. Não é que alunos do colegial sejam ignorantes a respeito de Camões ou de Einstein. Nem sobre a família Flintstone eles sabem alguma coisa. Que Copenhague seja a capital da Dinamarca, não é muita obrigação saber, embora seja um pouco estranho que não se saiba.
Mas é que há tipos e tipos de ignorância. Creio que o mais preocupante nas respostas desses colegiais não é exatamente o desconhecimento que tenham de geografia, ou dos Flintstones, mas a incapacidade de apreender o sentido de frases um pouco mais complexas.
O exemplo é a pergunta sobre o torcedor. A pergunta era longa demais para o cérebro sem treino da menina. "O que é que a lavadeira faz com a roupa que é o que o torcedor faz quando vai ao estádio?" Nessa pergunta, não se está testando nenhum conhecimento específico, mas apenas uma capacidade linguística; o número de "quês" atrapalhou a menina.
Seria excessivo pedir algum treino de lógica, algum exercício gramatical de uma pessoa incapaz de responder a essa pergunta. E isso com gente que está no colegial! Não é tudo. Já soube de programas do "Passa ou Repassa" envolvendo universitários.
Já que estamos num tempo de volta às aulas, gostaria apenas de perguntar o que é que essa moçada aprende, quatro horas por dia, se é incapaz de responder a perguntas tão banais. Desconfio, entretanto, que o problema não é esse.
O problema é, na verdade, o quanto desaprendem, enquanto não estão mascando chiclete na sala de aula. Por pior que seja o ensino, alguma coisa é ensinada; dois mais dois igual a quatro, por exemplo. Sujeito no plural, verbo no plural. Fora de aula, a pessoa vê televisão. O desenho dos Flintstones. No desenho dos Flintstones, há Fred e Barney. Barney é o loiro. O desenho dos Flintstones é um, o desenho da Família Simpson é outro. Isso até o macaco da Coca (não o da Pepsi, que é um gênio) pode perceber.
Mas se uma pessoa chega até os dezesseis anos sem poder distinguir uma coisa da outra, algo de muito mais grave do que um sistema educacional pobre em Geografia e Português está ocorrendo.
É o próprio "Passa ou Repassa" quem nos adverte do processo. Nem é preciso o "Passa ou Repassa" para saber. Mas vamos ao "Passa ou Repassa".
Tudo ali é feito sob o signo da euforia. Torcidas organizadas pulam e gritam. O desafio de "conhecimentos gerais" ocorre da seguinte forma. Quem erra, ou demora na resposta, recebe uma torta na cara. A apresentadora Angélica já diz no começo: "bôi geração saúde... aqui todo mundo é geração saúde... cigarro, está fora... para que fumar? Faz outra coisa... Malhar, curtir... Cigarro aqui é proibido... mas o que não é proibido é torta na cara...!"
Ou seja, tudo o que for exercício físico, agitação de dança e de ginástica, é bom. Cigarros significam paralisia, vida sedentária, leitura. Nada a favor dos cigarros, quanto a mim. Mas o problema de Angélica é que fumar já é um hábito reflexivo, "parado" demais. Ler já dá câncer.
O que apavora, nessa estupidez juvenil, não é o quanto deixam de aprender, mas o quanto estão envolvidos em interesses e atividades que refutam estruturalmente a atividade intelectual. De qualquer tipo: videogames, aeróbica, patins; até a televisão já é esforço mental excessivo para essa turma. De modo que mesmo em questões simples, que não exigem conhecimento cultural prévio, hesitam, atrapalham-se. As regras mais simples da crase serão para eles coisa tão complicada quanto a teoria dos quarks ou a dialética hegeliana.
A escola, o colégio, a universidade, têm de se virar hoje em dia com seres mutantes. Submetidos a tal carga de pressões imediatas, velozes, corporais, que uma sentença com mais de três palavras é incompreensível, que uma oração subordinada é tão estranha quanto uma equação de fractais em forma de rosca sem fim. Será que estão percebendo o que se passa? Será que os professores desses colégios e faculdades que aparecem no "Passa ou Repassa" sabem com que estão tratando? Será que os colégios "de elite" estão envolvidos numa realidade melhor do que essa?
Falta de lógica, falta de disciplina, falta de gramática, falta de álgebra, falta até de latim. Excesso de atividade física, exatamente numa época em que o preparo muscular das pessoas é menos importante do que nunca, dado o avanço tecnológico voltado a economizar as calorias do ser humano. Imbecilizam-se as pessoas, quando mais do que nunca caberia fazê-las inteligentes. Não mais precisam caregar blocos de pedra para fazer pirâmides.
Mas o irônico da coisa é que uma imensa parcela da juventude se prepara fisicamente para ser massa escrava no Egito, quando guindastes movidos por computador são capazes disso.
Uma nova massa de escravos, não digo nem escravos intelectuais, mas escravos gramaticais, escravos algébricos, está sendo construída pela máquina de imbecilização eletrônica. Escravos felizes: recebem tortas na cara e comemoram o fato.

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