São Paulo, sexta-feira, 16 de fevereiro de 1996
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Ojeriza do público ao teatro cria estilo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Conheço pouquíssimas pessoas que sinceramente gostam de teatro. Geralmente, pertencem à própria "classe" teatral, ou gravitam em torno dela. Não é segredo que a maior parte das pessoas detesta ir ao teatro. Esse fenômeno tende a atingir a própria atuação dos diretores, dos autores, dos atores.
Ninguém se se sente à vontade com o que está fazendo, de modo que surge um estilo, ou vários estilos, de encenação que parecem responder a essa ojeriza, a esse horror que o público tem.
Tento fazer uma tipologia. Há os diretores que, sabendo da impopularidade do teatro, apostam numa "outra coisa", que não é mais a encenação de um texto diante do público. Apostam no que poderia ser chamado de "teatro-sensação", uma espécie de aventura, de disneylândia entre cenários inusitados.
Ricardo Karman, com sua "Viagem de Merlin", levava os espectadores a megadepósitos de lixo em chamas, a teatros abandonados, a parques e lagos fantásticos na névoa noturna do inverno. Fez um belo espetáculo, mas um espetáculo que, por assim dizer, fugia da maldição do palco teatral. "O Livro de Jó" explora, com um texto bíblico e a meu ver pouco dramático, os ambientes do hospital Humberto I, sensacionalizando o sofrimento numa peça que é de impacto, mas muito pouco peça.
Esta é a primeira vertente das reações frente à crise do teatro. Há outras. Por exemplo, fazer um teatrão tradicional, mas com a presença de atores e atrizes da Rede Globo. O público vai, um pouco na expectativa de assistir a uma novela ao vivo. Por melhores que sejam os resultados de "Três Mulheres Altas", por exemplo, uma impressão de rigidez predomina no final.
Outra saída é a de apostar num público de vanguarda, o público dos que realmente gostam ou pensam que gostam de teatro. O sensacionalismo das emoções e dos ambientes dá lugar ao sensacionalismo da experimentação estética; no lugar da disneylândia insólita, encontramos o insólito cinematográfico das montagens de Gerald Thomas.
Surge também a técnica do teatro ritual, arcaizante. A presença física dos atores e das atrizes, num ambiente pobre, é explorada numa menção arrepiante a um passado do qual o teatro se sabe fazer parte: é o caso das montagens de Romero de Andrade Lima, em sua pureza armorial, agreste, religiosa. Ou então encontramos alguém capaz de celebrar ironicamente o rito messiânico de sua própria personalidade, ela mesma tornada arcaica pelos tempos atuais, mas auto-alimentada pela ilusão profética: o teatro de Zé Celso.
Também de ilusão profética, mas concedendo ao visual, ao espetáculo, aos efeitos de cena, vive o teatro de Antunes Filho. Oscilando entre o decorativo dos cenários e um ritualismo místico, entre o poder dos textos e a inflação das intenções pseudofilosóficas de cada montagem, Antunes Filho consegue atingir um alto meio termo nessa crise toda, ainda que cada montagem sua pareça estar sempre a um passo do "kitsch".
Comento duas peças em cartaz, "Mary Stuart", na montagem de Gabriel Villela, e "Édipo de Tabas", com direção de Renato Borghi.
"Mary Stuart" representa uma virada na carreira de Gabriel Villela. Este diretor se localizava entre a escola de Antunes Filho e as promessas do teatro ritual, seco, popular de Romero de Andrade Lima. O encantamento de suas montagens anteriores era católico, decorativo, com cenários sobrecarregados e belíssimos. "Mary Stuart" é mais "protestante", sem opulência visual, sem dourados nem púrpuras, procurando apenas valorizar o texto de Schiller, a tragédia da rainha católica no cárcere.
Trata-se, contudo, de um caso em que as soluções são justas, razoáveis, mas ao mesmo tempo intensificam o problema que pretendiam resolver. Como víamos acima, o problema é que ninguém aguenta ir a uma peça de teatro. O texto de Schiller, se encenado na íntegra, duraria umas três horas. Coube a Marcos Renaux e Marilene Felinto realizar um competente, convincente e sóbria tradução do texto, baseada na adaptação que o poeta inglês Stephen Spender fez da peça original.
A peça de Schiller ganha em concentração, sem perder o sentido. Só que, a essa compactação dos significados, seria necessário um correspondente aumento do carisma dos atores. Cada fala, ali, teria de ser eletrificada por uma dicção possessa, extrema, visceral. Com razão, talvez, Gabriel Villela optou por um estilo sóbrio de atuação, capaz de dar ao texto o máximo de transparência. Ele sabe que o público detesta teatro.
Mas desconfio que, por isso mesmo -para tornar-se admissível a um público pouco teatral- o resultado da sua montagem tenha ficado enfraquecido. O drama se passa com transparência invejável; mas é como se, no palco, houvesse um medo de que a pílula fosse difícil demais para o público engolir.
O "Édipo de Tabas" de Renato Borghi aparentemente não se envolve nesse dilema. Mas no fundo é o mesmo dilema. Há um texto clássico, vigorosíssimo, sobre o qual pesam desconfianças modernas: será que o público encara a montagem de uma coisa dessas? A solução de Renato Borghi, como a de Zé Celso em geral, é dupla: alegorizar o que se passa e investir num ritual participativo do público.
Trata-se de um espetáculo forte, bonito de ver. A garra dos atores é admirável. Surgem, entretanto, dois problemas. O primeiro é o de enfrentar a reticência do público a que vimos nos referindo. Como solucionar isso? Na escola de Zé Celso e Renato Borghi, trata-se de incutir no público um espírito ritual, quase religioso, dionisíaco. Os espectadores recebem latas e panelas na entrada do teatro, para que façam barulho à vontade. "Participam", assim, na criação de um clima que modernamente o teatro é incapaz de promover com seus próprios meios.
Como se isso não bastasse, é necessário atualizar, ou melhor, abrasileirar o texto clássico, num procedimento alegórico. O coro grego ganha cores de favela ou de taba tupi, Creonte parece Fernando Henrique ou Fernando Collor, a procura dos traidores da pátria tebana é um pouco a procura dos responsáveis pelo Brasil não ter dado certo. O rei Édipo enverga uma bandeira brasileira.
Cria-se assim uma superposição de significados. O dilema clássico, eterno, de Édipo se reveste de conotações brasileiras. Nos anos 60, o teatro de Zé Celso ou de Renato Borghi podia ter efeito eletrizante, já que qualquer alegoria do destino brasileiro tinha significado unívoco: libertação nacional, revolução, antiimperialismo. O sentido de qualquer montagem, por precária que fosse, era dado pelas condições históricas.
Hoje em dia, nada é tão claro para o público e, desconfio, tampouco o é para Renato Borghi. Creonte cresce como personagem, à medida que representa essa ambiguidade entre o salvador da pátria e o oportunista político. Mas Édipo, Jocasta, o coro, parecem perdidos na alegoria até que, na segunda metade da peça, esquecem-se dos significados nacionais para representar apenas a tragédia. Quando o trágico, o clássico predominam, meu estranhamento diante da montagem diminui.
Mas é típico dessa escola teatral a recusa em levar a tragédia às últimas consequências. Zé Celso inventou um final feliz para "As Boas" de Jean Genet, como macumba propiciatória de uma emancipação da classe baixa. Renato Borghi faz da tragédia de Édipo uma salvação coletiva, terminando em samba.
A intenção é dupla: mobilizar o público, num ritual entre quatro paredes, contra a inviabilidade do teatro hoje em dia. E mobilizar o texto, contra a inviabilidade de uma utopia nacional agora. Por cima de tudo, o cinismo cênico, o humorismo diabólico de Renato Borghi, assim como o messianismo da transgressão angelical, infantil, que Zé Celso sabe representar tão bem.
O teatro anda mais interessante do que nunca; seus problemas, suas utopias, suas soluções dão muito o que pensar. Mas se reconheço o vigor do que vai sendo feito -o fato de que o meio de alguma forma se agita-, tenho também de dizer que ainda não estou contente. E o maior medo é que seja impossível, para o teatro, contentar quem quer que seja, num ambiente tão hostil a esse gênero artístico.

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