São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 1996
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Warfelmann prega ética por meio do absurdo

CELSO FIORAVANTE
DA REDAÇÃO

Alemão radicado em Paris, o fotógrafo Vincent Warfelmann, de apenas 26 anos, cancelou recentemente uma exposição -em andamento- de seus trabalhos na capital francesa porque a proprietária da galeria acreditava que eles pudessem ser montagems feitas por computador.
"Existe uma natureza bizarra em minhas fotos e os computadores não produzem realidade alguma", explicou.
A partir de uma prática bastante comum em fotografia -a utilização de um mesmo negativo seguidas vezes- e trabalhando sempre com uma mesmo modelo, Warfelmann consegue produzir uma nova realidade. São imagens retorcidas que remetem, à primeira vista, ao universo bizarro da fotógrafa norte-americana Diane Arbus (1923-1971) e ao imaginário perturbado do pintor britânico Francis Bacon (1910-1992).
Em entrevista à Folha, por telefone, de Paris, Warfelmann falou sobre suas influências literárias e pictóricas e sobre os princípios éticos que regem seu trabalho.
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Folha - Você sempre se dedicou à fotografia?
Warfelmann - Eu tentei ser pintor, mas tinha uma irmã que sempre foi melhor que eu na pintura, então decidi procurar alguma outra coisa para me dedicar e fui parar na fotografia. Eu tinha 19 anos e ainda morava na Alemanha.
Folha - Como é o processo de produção de suas fotografias?
Warfelmann - Algumas vezes desenho antes as imagens que quero criar. Depois trabalho com Polaroid e grandes negativos. Comecei quando vi um negativo exposto repetidamente por engano. Observei que algumas coisas tinham sumido e outras, não. Comecei então a fazer sobreposições de imagens.
Para cada trabalho, faço entre cinco e 25 exposições. Levo em torno de quatro ou cinco semanas para criar cada fotografia.
Folha - O cubismo e o surrealismo são influências fortes?
Warfelmann - Uma grande influência para mim é o expressionismo alemão. Também gosto muito de Francis Bacon e da fotografia de Diane Arbus. O surrealismo de Dalí não me agrada. Eu gosto da idéia da exploração dos hábitos. Procuro encontrar um outro senso nas coisas ao mostrá-las de uma maneira não-habitual.
Nesse novo senso, eu tento encontrar uma perspectiva entre as relações sociais.
Folha - A influência mais forte vem da pintura ou da fotografia?
Warfelmann - Sobretudo da pintura. Gosto de muitos fotógrafos, mas não vejo meu trabalho dentro de uma tradição fotográfica. Quando as pessoas olham minhas fotos, elas vêem um tipo de surrealismo, mas eu estou mais interessado em literatura, principalmente existencialista. Escritores da solidão, que procuram encontrar um modo de descrever a identidade e seu desejo de integridade em uma cultura.
Quando faço uma série de fotos é como se escrevesse um romance. Você procura um personagem que será o protagonista. E na história do protagonista, você procura explicar uma certa alegoria da vida.
Folha - O circo não é uma influência?
Warfelmann - Curiosamente, eu fiz uma série anterior a esta que se chamava "Le Cirque de la Nuit" (O Circo da Noite). Ela tem uma certa influência do absurdo. Foi o primeiro ensaio que fiz sem qualquer interesse comercial. Era o começo da minha técnica. Eram cinco fotos, mas três foram roubadas e o laboratório perdeu os negativos. Foi muito triste.
Folha - A escolha de uma modelo negra é uma crítica social?
Warfelmann - Queria trabalhar com uma minoria. E uma minoria que não fosse necessariamente numérica. Esta modelo está entre homem e mulher, negra e branca... Ela é um pouco de tudo. Ela é o ser humano existencial. Eu não procurava um homem ou mulher, uma magra ou gorda, uma branca ou negra. Eu queria alguém que pudesse ser todos, mas que ao mesmo tempo fosse alguém. É uma alegoria de todos os homens.
Folha - A vaidade é um dos males do mundo?
Warfelmann - O grande problema é a separação do corpo e do espírito. O que eu procurei explicar é uma certa tragédia, a perda do contato com a cultura.
Vivemos hoje em um período muito marcado pelo tempo e pouco marcado pelo espaço. Isso é um grande perigo. Perdemos o espaço e com isso o verdadeiro contato humano. Embora o mundo seja pequeno, as pessoas são menores ainda.
Com minhas fotos, eu procuro explicar que perdemos o contato direto e credível com as pessoas. Perdemos algo que é a base da identidade e da reflexão.
Hoje, com a Internet e a comunicação através de computadores, cada vez mais habitamos em um tempo que perde o espaço. Mas acho que o espaço é a única forma de estabelecer uma emoção entre as pessoas. A identidade e a base da ética se desenvolvem através do contato. Se perdemos o espaço, perdemos o contato e, consequentemente, um certo senso de ética muito facilmente.
Folha - Você interrompeu recentemente uma exposição sua em Paris. Por quê?
Warfelmann - Foi um problema com a dona da galeria, que acreditava que minhas fotos haviam sido retocadas por computador. Dizia que eram montagens. Mas minhas imagens são exatamente um discurso contra isso. Mas ela insistia que minhas fotos eram muito perfeitas. Muitas pessoas conhecem meu trabalho há muito tempo, existem laboratórios que fazem as reproduções, modelos que trabalham comigo...
A substância de minhas fotos é muito importante e é importante também que eu as faça com as técnicas fotográficas. Me importa que exista uma credibilidade sobre algo que realmente se passou. E, para mim, fazer uma montagem no computador comporta a perda do espaço. Para você fazer uma colagem de imagens, você não precisa da fotografia.
As pessoas se interessam pelas minhas fotos porque elas têm a credibilidade da verdadeira fotografia. Existe uma realidade bizarra nas fotos e os computadores não produzem realidade alguma. Para mim isso é muito importante.
Quando eu faço uma fotografia eu penso na abertura do espírito do observador. Não quero dizer uma coisa específica, mas quero abrir o espírito das pessoas que as vêem. Quero dar uma nova impressão. Por isso faço as fotos tão surrealistas, inabituais. A essência das belas artes não é condicionar, mas abrir. Não é fechar a visão das pessoas. A fotografia ainda consegue perturbar as pessoas. Ela olha uma realidade conhecida, mas de uma outra maneira.

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