São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 1996
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Rê Bordosa agora é tia, em espetáculo besteirol

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Rê Bordosa, nove anos depois da sua morte e um ano depois da sua breve ressurreição, nos quadrinhos de Angeli, virou besteirol no teatro.
A "pin-up dos anos 80", que foi a imagem da tribo urbana paulistana, agora reaparece estranhamente carioca -e o que ainda carrega da Rê Bordosa paulistana é o que menos atrai, o que menos diverte, em "Rê Bordosa, o Ocaso de uma Doida".
Não à toa, aliás, foi no Rio que a comédia de esquetes, de quadros dirigida por Márcio Trigo -também o diretor de Casseta e Planeta, na televisão- alcançou maior repercussão, ficando oito meses em cartaz.
Betty Erthal, que faz a própria, mais Anderson Muller e Marcelo Medici, que fazem as demais personagens, desde os pais até o garçom Juvenal, reinventaram o entorno da banheira de Rê Bordosa.
O caráter mais transgressivo e até mais melancólico dos quadrinhos de Angeli desapareceu. É preciso esforço para identificar algum traço ligado a Robert Crumb, o cartunista americano que tanto influenciou Angeli, ou ainda aos punks, do ambiente em que surgiu Rê Bordosa no início dos anos 80.
Não faltam palavrões e excessos, com uma Rê Bordosa que cheira cocaína sem parar, fuma maconha sem parar e sai dizendo "me comeram", daí para baixo, em grosseria.
Mas o que faz a platéia rir não é mais a "pin-up dos anos 80", como descreve a própria peça. São as outras personagens, mais atuais, conhecidas do cotidiano, mas também menos ácidas, mais alegres e, por assim dizer, leves.
É o caso dos amantes de Rê Bordosa, verdadeiros tipos cômicos, aliás, como é bem próprio do teatro besteirol. São exemplares aqueles interpretados por Marcelo Medici, que imprimem em pequenos detalhes, o sotaque, o andar, a imagem da época.
Anderson Muller, que faz o garçom Juvenal sem maior invenção, Juvenal que parece tão anacrônico quanto a própria Rê Bordosa, tem melhor resultado quando travestido, como no quadro de auditório, uma entrevista com Rê Bordosa.
O quadro de auditório e os travestis masculinos e abrutalhados sempre foram os elementos mais emblemáticos do besteirol.
Não que "Rê Bordosa, o Ocaso de uma Doida" não tenha mais coisa alguma dos quadrinhos, das tiras. No próprio texto, quando escapa dos esquetes, o espetáculo ou show traz piadas que parecem tiradas diretamente dos três ou quatro quadros de jornal.
Um diálogo como: "A noite de ontem foi inesquecível/ Conta/ Eu esqueci". Ou, no telefone: "Alô, é da clínica Roto-Rooter? Eu queria fazer um aborto".
O problema é que o tempo, o timing dos quadrinhos, dos balões, não é o tempo do palco -e as tiradas não funcionam. E há plena consciência de que Rê Bordosa, no fundo, é uma personagem datada.
Angeli, tornado personagem ele próprio, numa interpretação pouco feliz, reverencial e séria demais, de Marcelo Médici, é quem avisa, na peça, "agora, com a Aids, como é que eu poderia continuar levando Rê Bordosa pras orgias?"
Rê Bordosa morre no espetáculo, como morreu antes, porque o cartunista não queria chegar aos 60 anos desenhando a Rê Bordosa, apesar do verdadeiro culto à personagem.
Angeli seguiu o exemplo de Crumb, que também destruiu a sua maior criação, Fritz the Cat. O problema é que volta e meia querem Rê Bordosa de volta, nem que seja gritando, como na banheira, com um jovem ladrão, "me lambe, me chupa, me chama de tia".

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