São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 1996
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Entrevista é princípio do fim de traficante

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Marcinho VP foi preso. Dez dias antes da prisão concedeu uma entrevista coletiva no morro Dona Marta, onde Michael Jackson gravou. Marcinho VP era o homem forte do tráfico, o mesmo que vendeu a segurança para que o cineasta Spike Lee dirigisse em paz o clipe de Jackson.
Marcinho VP foi preso com vida. É um homem de sorte. As entrevistas coletivas no morro são uma espécie de beijo da morte.
As coisas funcionam assim. Primeiro, os jornalistas focalizam um nome. Ele se torna famoso. Tudo que diz respeito a ele passa a ser notícia. Pequenas falsidades, inclusive factóides que jamais poderiam ser checados, compõem a generosa oferta de informações sobre o personagem.
Criada a fama, surge, então, a necessidade da entrevista. O homem é alcançado pelos repórteres que usam "aviões", mandam recados pelos frequentadores das biroscas. O homem resolve capitular.
Quando havia uma luta pela sucessão do tráfico na Rocinha, Naldo e Buzunga caíram nessa armadilha. Deixaram-se fotografar, falaram, Naldo apareceu até em página de moda, com a matraca na mão e um casaco de moleton com capuz. Dias depois, estavam varados de bala.
Publicada a entrevista, que na intimidade da redação é gozada como uma vitória, os editorialistas do próprio jornal se escandalizam: como foi possível que um traficante desse entrevista? Onde está a polícia, que não encontra com todo o seu aparato de informação um homem em que os repórteres tropeçam nas vielas do morro?
Aí aparece a polícia. Ao invés de prender, levar uma grana, e soltar de novo, dessa vez, prende para valer. Às vezes mata, às vezes não.
Os jornais estampam gloriosos a prisão de um perigoso traficante. Todos cumpriram seu dever. O repórter entrevistou, o editorialista se indignou, a polícia prendeu e os leitores respiram aliviados. Quando o respeitável leitor acha que está tudo bem, na verdade, acontece uma pequena guerra nas vielas do morro, a guerra pela sucessão do homem que foi preso. Ela termina com várias mortes e um novo nome ocupando o espaço do poder. Um nome que aos poucos vai se firmando, que aos poucos se torna conhecido dos repórteres, um novo nome para entrevistar.
É um mecanismo implacavelmente conservador, que deixa tudo como estava antes mas não de uma maneira seca, sem graça. É um mecanismo que deixa na boca de cada um o sabor do dever cumprido, a falsa sensação de que a sociedade triunfou sobre o crime, esse clima de fim de filme de mocinho, de onde saímos de cabeça erguida esmagando pipocas jogadas no chão.
Ficamos contentes com isso. Os colombianos pelo menos têm cabeças mais ilustres para decepar: os irmãos Rodriguez, do cartel de Cali, Pablo Escobar, de Medellín.
Aqui não, basta que se metralhe um menino de 13 anos, o Brasileirinho, para que todos respirem aliviados -a lei e ordem prevaleceram.
A dialética do mocinho e do bandido é a dialética do comércio clandestino de drogas. Tão estranha como o carinho que dedicamos a dona Maria do Carmo, a mulher mais velha do mundo.
Quando descobrimos que dona Maria do Carmo era a mulher mais velha do mundo, nosso carinho começou a encurtar sua vida. Ela queria ver o mar? Pois bem, César Maia, o prefeito, a levou ao mar, enrugadinha, assustada. Ela queria ver o mar, o prefeito a levava pela mão com a solenidade de quem marchava pelas avenidas de um cemitério. E onde estava o mar, se ela via apenas flashes e fotógrafos?
Decidimos depois que ela desfilaria numa escola de samba. De novo, a alegoria da morte. Só víamos os olhos arregalados da mulher mais velha do mundo, afundada no carro alegórico, os ouvidos tapados com algodão.
Personagem de Fernando Pessoa, sobrevivente de si mesma, a mulher mais velha do mundo olhava assustada para a multidão que aplaudia. O que aplaudiam, por que aplaudiam, e se eu quiser fazer xixi, quem vai me tirar daqui de cima?
Roubamos alguns anos da mulher mais velha do mundo, tocamos com aplicação a engrenagem das drogas e marchamos alegremente para o século 21.
As traças das mudanças comem com paciência nosso castelo de papel, mas quando desabará, se desabar?
Movimento dos barcos, movimento... A genitália, por exemplo, é um termo médico legal destinado a deserotizar a palavra, reduzí-la ao nível de uma autópsia. A genitália desnuda ganhou a avenida, subiu num palanque do presidente, e neste Carnaval se tornou autônoma e aparece em forma gigante nas alegorias da Beija-Flor.
A igreja pede que não se faça amor e nem se beba. Carnavalescos baianos inventaram essa dança da garrafa que funde os dois pecados num só.
Que dona Maria do Carmo, apesar de nosso carinho, mantenha os olhos arregalados. Alguma coisa sempre pode acontecer nos próximos 127 anos.

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