São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 1996
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Coincidências ameaçam dogma linguístico

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

José Simão fez graça, outro dia, com o nome do deputado que defende a volta do consumo de bebidas alcoólicas nas estradas paulistas. O deputado se chama Silvio Martini; claro que, com um sobrenome de coquetel, ele "tinha" de ser contra a proibição.
Passo de Martini para Gancia: Barbara Gancia, em sua coluna, brincou com o nome do advogado que defende o festeiro Scarpa de Punta del Este, acusado de sonegar impostos. O advogado é o dr. Fachada.
Volto a José Simão, que notou o nome de uma comentaristanas transmissões do Carnaval, Glória Bicho. Deveria ser "Glória ao Bicho", diz Simão.
Essas coincidências entre os nomes próprios das pessoas e aquilo que elas fazem até que são mais comuns do que se pensa. Há algum tempo venho colecionando ocorrências desse tipo.
No jornal de segunda-feira, encontrei um dos acusados de operações irregulares no Banespa, que tem o sobrenome de Sigill. Nos anos 70, havia um investigador do Dops, se não me engano, chamado Singilo. As coisas não param aí.
Os leitores da Folha deparam-se regularmente com os artigos de um economista que se chama Claudio Contador. Muitos livros têm sido traduzidos por um Antonio Trânsito. Costumo passar por uma clínica de operações plásticas dirigida por dr. A. Bustos.
Há mais. Nos círculos anglo-saxônicos, é conhecido o nome do filósofo John Wisdom (sabedoria). Na revista Casa e Decoração, há projetos de um decorador (e paisagista?) chamado Arthur de Mattos Casas. Quando Tutu Quadros envolveu-se numa complicada briga com seu pai, Jânio Quadros, apareceu no noticiário o nome do advogado Carlos Alberto Rollo.
O homem que desenvolveu uma teoria provando que Shakespeare nunca escreveu peça nenhuma tinha o nome de Looney (lunático). Um dos programadores de música na rádio Cultura FM é José Roberto Prazeres. Há também um sindicalista de sobrenome Grana. E o Mercadante? Será que é estatizante?
Há uma alegria infantil em encontrar essas coincidências; é como se vivêssemos em Patópolis, onde o treinador de cães que Pluto frequenta se chama dr. K. Nino, ou determinado bandido atende pelo nome de Joca Fajeste.
Subitamente, um dos dogmas da linguística moderna se vê abolido. É o de que não existe relação necessária entre o significado e o significante, entre o nome e a pessoa, entre o som de uma palavra e o que ela significa. Uma palavra, a rigor, é apenas convenção arbitrária: para o mesmo objeto, os ingleses dizem "tree", os alemães "Baum", nós "árvore".
O diabo é que ninguém se contenta com essa arbitrariedade, com esse acaso cego a ligar um som e um sentido. É comum pensarmos, por exemplo, que Fulano não tem "cara" de Fernando -seu verdadeiro nome- e "mais cara" de Antenor ou Expedito.
Até aí tudo bem, pois os primeiros nomes são sempre uma espécie de senha para a classe, a cor, a idade de quem os possui. Grande número de "patricinhas" só pode mesmo se chamar Patrícia ou coisa parecida, nunca Eponina, Úrsula, Adélia ou Eudoxia. Talvez não Rosicleide ou Vandeusa. Mas nunca se sabe.
Isso, quanto aos nomes de batismo, que não são tão arbitrários assim, pois revelam as preferências, a ideologia, a origem social dos pais. Mas os nomes comuns, nomes de coisas, nomes "sem pai", porque de origem obscura, intrigam há milênios a humanidade, sempre inconformada com a idéia de que toda linguagem não passe de convenção arbitrária.
Leda Tenório da Motta, num artigo de seu livro "Catedral em Obras" (ed. Iluminuras) toca nesse assunto, e remete ao curioso recenseamento feito pelo crítico francês Gerard Genette, em "Mimologiques" (ed. du Seuil, 1976). Genette começa com um diálogo de Platão, onde Sócrates discute com dois personagens. Um, Crátilo, acha que cada palavra é capaz de representar, com seus sons, o próprio objeto que designa. O outro, Hermógenes, diz que entre som e sentido, entre significante e significado, a relação é puramente arbitrária, casual.
"Mimologiques" tem como subtítulo "Viagem à Cratília", ou seja, ao país de Crátilo, e recenseia, ao longo dos séculos, todas as tentativas de "provar" que determinada palavra tem realmente o som que seu significado exige. Trata-se de uma investigação vertiginosa.
Um teórico inglês do século 17, por exemplo, associava as palavras que sugerem "desvio", "ondulação", à letra S, ela mesma ondulante: "swerve", "swell", "swing", "swim". Algumas outras teorias associam a letra (o som) R à idéia de movimento: "run" em inglês, "rápido" em português, os rios Reno e Ruhr na Alemanha, "rhein", em grego, deslizar; no diálogo de Platão, há um motivo para isso, qual seja, o de que a língua ao pronunciar o "r" vibra sem parar.
Mas o encanto de ligar sonoridade da palavra com o objeto designado continua até hoje. Genette cita as especulações do poeta Paul Claudel, para quem a palavra inglesa "eye", olho, representa claramente dois olhos com um nariz no meio. A letra F "tinha" de ser a inicial de "forca", já que é sua representação hieroglífica, ideogramática. A palavra "trono", por sua vez, deveria ser grafada à antiga, "throno", já que a letra H é o trono visto de frente, e a minúscula, h, é o trono de perfil.
Tomemos, por exemplo, a palavra "catarata". Cataratas do Iguaçu. Poderiam ser outra coisa além de "cataratas"? A sonoridade da palavra imita, de certo modo, o rumor das águas. Mas justamente não se trata de "rumor", termo dotado de algum mistério murmurante e coletivo; trata-se de estrépito claro, repetido, amplo, aberto, aquático, dramático.
O problema, a rigor, é saber o quanto uma palavra é simples onomatopéia ("cocoricó", para o canto do galo, animal que os bororo chamam cogorigo), e o quanto é simples convenção ("sr. Ramos", para o vizinho do 161).
Genette mostra, em seu livro, o quanto a poesia atual é devedora das teses de Crátilo -a crença numa identidade entre som e sentido- ao passo que toda a linguística moderna obedece a seu adversário, Hermógenes, adepto da pura convencionalidade da linguagem.
Um dos maiores poetas do século 20, Valéry, era convencionalista, hermogenista ao extremo em teoria, mas não deixava de acreditar numa poesia que fosse evocação sonora das realidades a que se refere. Toda nossa leitura de poesia segue esse parâmetro. "O tant de marbre est tremblant sous tant dómbres", verso valeriano que é meu preferido neste século -"onde tanto mármore treme debaixo de tantas sombras" evoca, na sonoridade, uma mistura de estabilidade fria -Valéry se refere a túmulos num cemitério- e mobilidade solar das sombras que o vento, nas árvores, projeta. Eugenio Montale evoca a secura do meio-dia de estio, ao longo de um muro branco com cacos de vidro em cima ("che ha in cima cozzi aguzzi di bottiglia").
Como não acreditar, em versos como esses, numa relação direta entre significante e significado, entre som e sentido? Mas como acreditar que qualquer palavra, qualquer linguagem, seja naturalmente "representativa" da realidade?
Fico num meio termo. Imagino que a famosa "função poética" dos formalistas russos seja menos uma atenção específica ao som e à imagem das palavras, e mais o fruto de uma ilusão cratiliana, de um artifício pelo qual o verso, a poesia, a prosa artística, se inventam como uma espécie de onomatopéia sofisticada.
E o que é uma onomatopéia sofisticada, se não alguma coisa que reúne as várias funções da linguagem? A informação, a expressão, a forma, a metalinguagem; o grito pessoal, a notícia, a eufonia, a ironia, não é tudo isso junto o que faz uma poesia digna desse nome? Confissão, ordem, imitação sonora, técnica, emoção: a poesia precisa ser tudo isso junto, sob pena de não ser coisa nenhuma. Não há "função poética" pura e simplesmente, como querem os formalistas. A função poética é justamente a junção de todas as outras, inclassificável, e às vezes fruto do acaso, como quando topamos, num jornal, com os nomes de Claudio Contador ou do dr. Fachada.

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