São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Ano borboleta ou ano gafanhoto?

ROBERTO CAMPOS

Eventos de 1996 devem colocar o ano como um dos principais do século 20
Enquanto isso, o Brasil tem que acelerar as reformas para o sucesso do real
"A arte suprema da política é engolir sapos pela manhã para vomitar borboletas à tarde" Lomanto Junior, ex-governador da Bahia
Há anos divisores de águas, que alteram a modorra da história. 1776 foi um desses, marcado pela publicação do livro "A riqueza das nações", de Adam Smith, que iniciou a era do liberalismo, e pela Declaração de Filadélfia, berço da democracia americana.
Em 1917, quando nasceu a Revolução Russa, iniciou-se a era da "ditadura do proletariado" que, em nome da justiça social, promoveu o maior morticínio da história humana, sendo endeusados dois grandes carniceiros -Stalin e Mao Tse-tung.
1945 foi marcado pela bomba atômica, pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pelo nascimento da ONU. Em 1989, assistimos ao colapso do socialismo, seguido da dissolução do último império remanescente, o Império Soviético.
Terá o ano em que vivemos -1996- significado especial no moinho da história?
Tudo indica que sim, pois coincidem quatro eventos importantes: as eleições presidenciais americana e russa, a sucessão de Deng Xiaoping e a Conferência Cnstitucional de Madri sobre a União Européia.
Esses eventos diferem em grau de previsibilidade e periculosidade. O menos traumático será a eleição norte-americana, por ser grande, no momento, a área consensual quer em política interna e política externa.
O presidente Clinton concorre à reeleição pelos democratas. O senador Bob Dole será seu provável desafiante republicano (o avanço surpreendente do conservadorismo radical de Pat Buchanan parece temporário, sendo mais um protesto que um programa de ação).
Na política externa, na qual Clinton vem obtendo inesperado sucesso, há pouca margem para dissenso. Internamente, as diferenças são e ênfase e ritmo.
Ambos os partidos têm como meta o equilíbrio orçamentário em 2002. Os democratas querem um gradualismo maior, com lenta redução de impostos e programas sociais.
Os republicanos querem maior redução de impostos e o abandono mais rápido do assistencialismo, que eles chamam "cultura de dependência".
Há uma subjacente convicção de que os Estados Unidos deram uma virada: readquiriram competitividade face aos japoneses, mantêm superioridade tecnológica em áreas cruciais, enquanto o Japão continua recessivo e a Europa sofre de desemprego e rigidez estrutural. Entraram em recesso as teorias sobre o "declinismo" ou "decadentismo" americano...
Na eleição russa, ao contrário, há menos previsibilidade e mais periculosidade. Ieltsin decidiu recandidatar-se, apesar da impopularidade resultante das dores de transição para a economia de mercado e do conflito da Tchechênia.
O desafio maior é o do líder comunista, Ziuganov, atual favorito nas pesquisas. Este reconhece a impossibilidade da restauração do comunismo, mas certamente retardará as reformas econômicas, misturando o nacionalismo russo com uma nostalgia socialista.
Apenas tolera, em vez de cultivar, as práticas democráticas. Ieltsin seria mais tranquilizante para o Ocidente pois, apesar de recuos e inconsistências na abertura econômica (o último grande recuo foi a demissão de Anatoli Chubais, o herói das privatizações), parece vacinado contra os mitos comunistas.
Se não um democrata, é pelo menos um "autoritário liberal". Felizmente, o radical Jirinovski, cujo nacional-protecionismo é quase patológico, vem perdendo terreno.
O mais bem-dotado dos candidatos, intelectualmente, é o economista Vavlinsky, convertido à economia de mercado e familiarizado com métodos administrativos ocidentais.
Tem poucas chances, da mesma forma que o general Lebed, que combina um nacionalismo nostálgico com admiração pelo modelo econômico do general Pinochet.
A periculosidade provém da frustração resultante da interação do nacionalismo com a perda do status imperial.
Pode haver atraso na reconstrução, pela interrupção da abertura econômica e deterioração das relações com investidores ocidentais.
O terceiro evento é a fase final da era Deng Xiaoping, o último dos heróis carismáticos da Grande Marcha, que conseguiu manter uma esquisita mistura de abertura econômica e rigidez política.
Como é de rigor nos sistemas socialistas, inexiste um ritual sucessório de competição organizada.
A regra é uma luta de poder e três são os candidatos potenciais: Jiang Zemin, o atual presidente, que parece o preferido de Deng Xiaoping; Li-Peng, o primeiro-ministro, que comanda a máquina partidária e Zhu Rongji, o presidente do Banco Central, que exerce as funções de czar econômico.
A sucessão chinesa desperta inquietação, sobretudo porque, manobrando o hipernacionalismo como substituto do carisma do velho líder, os rivais na luta sucessória podem agravar as tensões no Oriente.
Há antagonismos entre a China, de um lado, e as Filipinas e Vietnã, de outro, no tocante ao direito sobre as ilhas Spratley, potencialmente petrolíferas.
Há ameaças do uso de força para a reunificação de Taiwan, e de endurecimento político em relação aos impulsos capitalistas e democráticos de Hong Kong.
Em sua busca de afirmação como superpotência, os chineses podem dar-se ao luxo de uma política externa de geometria variável.
Os russos se sentem enfraquecidos pelo mau desempenho econômico e pela fermentação islâmica na Ásia Central e receiam a reativação de reivindicações territoriais chinesas.
Os americanos receiam, ao contrário, uma reaproximação entre aqueles países, para contestar o eixo nipo-americano, dominante na economia asiática. Os países do Sudeste da Ásia receiam que a miragem da "grande China" entusiasme demasiadamente suas minorias chinesas, além de sugar recursos de investimento.
É óbvio entretanto que essa liberdade de manobra é limitada. De um lado, o mercado norte-americano é a grande fonte de superávits chineses e o maior repositório de tecnologia.
De outro, a China quer adquirir respeitabilidade internacional, inclusive pelo ingresso na OMC, o que depende da boa vontade americana.
O quarto evento é a Conferência Constitucional da UE que se reunirá em Madri a partir de fins de março.
Ela definirá: a) se a Europa prosseguirá sua marcha para a integração política, tornando-se uma federação, ou se manterá sua frouxa confederação política acoplada a um mercado comum; b) se a UE deve ou não se ampliar para abranger os países do Leste europeu: c) se será possível manter o calendário da união monetária em 1999, ou se devem ser examinadas desde já soluções alternativas como o adiamento de sua implantação, o relaxamento dos critérios do acordo de Maastricht, ou a criação de um núcleo reduzido de países de moeda forte, aberto à adesão eventual dos demais.
Esses quatro eventos transformam o ano 1996 num ano atípico. É também crucial para o Brasil, pois nos próximos meses se decidirá se o Plano Real representou uma mudança cultural permanente na direção da estabilidade monetária, ou se foi apenas mais uma experiência frustrada.
Todos sabemos que o plano foi um soberbo exercício de ginástica aeróbica num corpo de frouxa musculatura.
A massa muscular virá não da política de câmbio ou de juros e sim do saneamento fiscal, que dependerá das reformas estruturais, complementadas pela privatização das estatais.
Serão cruciais tanto a aceleração das reformas no Congresso como o sucesso de duas privatizações que, além da folga fiscal que trazem, simbolizariam o abandono da ideologia dirigista e estatizante: a da Light e a da Vale do Rio Doce.
Ambas estão sob ameaça. A da Light, porque há indicações de que o BNDES cogita de fixar um preço mínimo que os investidores potenciais privados consideram grosseiramente sobrevalorizado.
A da Vale, porque alguns senadores, num inconsciente masoquismo, preferem que a empresa continue pagando miseráveis dividendos ao Tesouro, ao mesmo tempo que alimenta generosamente o fundo de pensões dos funcionários e subvenciona diretamente os Estados, sem o crivo do Tesouro e do Orçamento.
É ao Congresso, ao votar o Orçamento, que compete definir as prioridades regionais, e não a um grupelho de diretores sem mandato popular, em conchavo político com governadores.
Este ano da graça de 1996, quer no cenário mundial quer no plano nacional, poderá ou ser uma borboleta, que surge da explosão da crisálida, ou um gafanhoto, destruidor de esperanças!

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