São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Enviar corpos exige cuidados

DE NOVA YORK

O diplomata Dario Campos, responsável por assuntos médicos do Consulado do Brasil em Nova York, aprendeu que despachar um corpo de um doente de Aids para o Brasil exige um procedimento burocrático especial.
Para evitar eventuais contaminações, o corpo tem que viajar em um saco plástico, mergulhado numa geléia especial que evita qualquer entrada de ar.
A maioria dos brasileiros que morre de Aids em Nova York, entretanto, termina sendo enterrada ou cremada aqui mesmo.
Como eles escondem da família que são portadores do vírus e não gostam de se relacionar com outros brasileiros na mesma situação, é comum morrerem sozinhos ou em asilos.
Alguns só avisam aos pais quando já estão em estado terminal.
Foi o que aconteceu com Marquinhos, considerado pelos amigos um exemplo de bom humor e otimismo para enfrentar a doença.
Marquinhos morreu há duas semanas e sua mãe só conseguiu chegar em Nova York em seus últimos dias de vida.
"De todos os nossos amigos, ele era o mais falante. Era aquele que levantava o astral de todos", lembra-se o antropólogo João Fernando, que também é portador do vírus da Aids.
Com o corpo tomado por manchas provocadas por um câncer de pele, Marquinhos era obrigado a empanturrar o rosto de maquiagem. Seu último pedido: ser cremado e ter suas cinzas espalhadas pelo Central Park por um de seus amigos.
O chefe da cerimônia foi P., que também já tem manchas roxas causadas pelo câncer de pele espalhadas pelo pescoço.
A morte de Marquinhos jogou P. em uma profunda depressão que durou cerca de duas semanas. Durante esse período, P. decidiu suspender qualquer contato com a reportagem -inclusive seus depoimentos.
Menos sorte do que Marquinhos -que pôde encontrar a mãe antes de morrer- teve o ex-bailarino Daniel.
Como escondia da família que era soropositivo e não gostava de encontrar outros brasileiros, Daniel teve que ser internado em um asilo quando começou a ter dificuldades de realizar tarefas diárias por causa da doença.
"Ele não queria e resistiu muito, mas não havia outra opção porque morava sozinho e não tinha nenhum amigo", conta o assistente social Wagner Denuzzi, único contato de Daniel com o exterior.
Foi Wagner quem ajudou Daniel a contar para sua família que ele tinha Aids e a trazer a mãe e a irmã para Nova York quando a doença se agravou.
Sem falar uma palavra de inglês, assustada com a confusão da cidade, a mãe de Daniel teve problemas cardíacos no mesmo dia em que chegou aos Estados Unidos e terminou sendo internada às pressas em um hospital.
Como a irmã teve que ficar ao lado da mãe servindo de intérprete, Daniel terminou morrendo sozinho no dia seguinte, separado das duas por poucos quilômetros.

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