São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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O trabalho em extinção

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os economistas nunca chegaram a um consenso sobre nada, e o mercado de trabalho não seria a exceção. Ao contrário, não há consenso nem sequer sobre o conceito de "mercado de trabalho", que sempre foi visto com desconfiança ideológica e não apenas pelos marxistas.
O raciocínio que mais fregueses colecionou nos últimos séculos de capitalismo foi, evidentemente, o de que os trabalhadores são culpados pelo próprio desemprego. Se aceitassem salários mais baixos, aumentariam as contratações.
Complicando um pouco mais, os economistas associaram a decisão empresarial de contratar mais com a lei dos rendimentos decrescentes. Um exemplo evidente desta lei é a tentativa de cultivar um pedaço de terra. Quanto mais gente ajudar, mais produtivo o trabalho. Mas, a partir de um certo ponto, colocar mais gente trabalhando em cima de um mesmo recurso dado leva a ineficiências.
O mesmo raciocínio valeria para o mundo industrial. Portanto, contratar mais gente seria eficiente apenas se os gastos com salários fossem compensados com aumento de produtividade.
Essas explicações ficaram conhecidas como a visão "clássica" do desemprego, depois que o economista inglês John Maynard Keynes, há exatos 60 anos, publicou a sua "Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda". Contra as teorias que atribuíam a responsabilidade pelo problema aos próprios trabalhadores, transformando todo desemprego em alguma forma de "desemprego voluntário", Keynes (que era anti-marxista convicto) remeteu tudo para outro campo.
Para Keynes, o foco deveria ser desviado do "mercado de trabalho" para a decisão empresarial de produzir e investir. Decisão condicionada menos por uma suposta lei de rendimentos decrescentes ou pela teimosia dos trabalhadores que querem proteger seus rendimentos e mais pela taxa de juros e a de retorno de um investimento.
O economista inglês fazia questão de diferenciar entre o empresário produtivo e a especulação financeira que afeta cronicamente as economias contemporâneas.
Quando o retorno na especulação é mais atraente e rápido que o compromisso de contratar, produzir e distribuir mercadorias, a riqueza existente não se converte em mais emprego, apenas em mais patrimônio. Um patrimônio muitas vezes fictício, que evapora num piscar de olhos quando a crise financeira chega.
O emprego é determinado pelo investimento, mas o investimento depende da comparação entre formas alternativas de acumular riqueza. Essa comparação, em última análise, depende da taxa de juros. Numa economia real, o desemprego depende mais do Banco Central do que da vontade ou organização dos trabalhadores ou mesmo da legislação trabalhista.
Mais recentemente, houve um ressurgimento tanto de keynesianos "autênticos" ou "fundamentalistas" quanto de teorias que, mais uma vez, procuravam salvaguardar a pureza lógica dos mercados, transferindo a responsabilidade pelo desemprego e outras mazelas para os sindicatos, o Estado e outras instituições.
O problema desse debate é que justamente quando "heterodoxos" e "bastardos" se preparavam para um embate teórico-ideológico semelhante ao que ocorreu na época de Keynes, surgiu uma novidade, inexistente no início do século. As economias passaram por uma onda de inovação tecnológica e liberalização comercial sem precedentes e o objeto da discussão, o "trabalho", pode desaparecer.
Na época de Keynes (anos 30) o mundo mal saía de uma crise financeira e de uma guerra mundial, o protecionismo grassava e nenhuma onda tecnológica revolucionava os processos produtivos. E nada era mais natural que esperar dos pobres que resolvessem sozinhos seus problemas.
Sessenta anos depois, o mundo escapou da Terceira Guerra, a liberalização econômica avançou e estamos diante de uma das mais promissoras (e terríveis) ondas de mudança tecnológica da história.
O enfoque estritamente macroeconômico, campo em que se movem os keynesianos de vários matizes, passou a dividir as atenções com visões mais atentas ao desemprego tecnológico e às pressões do mercado mundial sobre a produtividade e os custos salariais de cada economia nacional.
A macroeconomia ficou espremida entre uma análise ainda mais macro (que toma o mercado global por referência) e uma observação extremadamente micro (que examina as formas de organização empresarial, os impactos dos vários tipos de inovação tecnológica, os níveis de motivação de cada trabalhador, a lealdade à empresa e as redes de comunicação entre os vários níveis hierárquicos).
Mas num ponto talvez esses vários enfoques possam algum dia convergir. Tanto na macroeconomia quanto na economia global, passando pelas várias formas de organização empresarial, o que está em jogo nos contratos não são mais mercadorias ou "trabalho", mas sim informação.
Enfim, nem os trabalhadores nem os defensores das leis do mercado sairão vitoriosos do debate. A "flexibilização" dos contratos trabalhistas talvez não traga a redução do salário real com que tantos empresários contam, mas certamente é um dos primeiros sintomas de que já não se está mais negociando "tempo de trabalho" e sim uma certa quantidade de informação.
A conclusão é que o desemprego não é mesmo voluntário e pode até ser estrutural. Mas o futuro do sistema econômico continua tão incerto quanto na época da utopia de uma sociedade de trabalhadores emancipados.

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