São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Paquistão teme cooperação nuclear

JAIME SPITZCOVSKY
ENVIADO ESPECIAL AO PAQUISTÃO

Primeira mulher eleita para governar um país islâmico, a paquistanesa Mohtarma Benazir Bhutto, 42, conquistou lugar na galeria de líderes mundiais ao romper tabus no mundo muçulmano e ao amealhar prêmios como o de figura feminina mais elegante do planeta.
A primeira-ministra do Paquistão impera num universo modelado pelo poder masculino e pelo insistente conflito territorial com o gigante vizinho, a Índia.
Filha da elite paquistanesa, Benazir Bhutto carrega uma educação requintada -estudou filosofia e economia na Universidade de Oxford (Reino Unido).
A sofisticação britânica contrasta com seu gosto por manifestações de rua e com a propaganda oficial, empenhada em promovê-la como a "verdadeira líder das massas".
Benazir Bhutto chegou ao poder pela primeira vez em 1988, aos 35 anos. A condição feminina e a juventude se somavam aos desafios enfrentados pela filha de Zulfikar Ali Bhutto, o premiê derrubado por um golpe militar em 1977 e enforcado dois anos depois.
Entre 1977 e 1986, durante a ditadura militar, Benazir passou cinco anos sob diferentes formas de detenção e amargou quase dois anos de exílio na Europa. Voltou ao Paquistão há cerca de dez anos. Começava a jornada que culminaria na vitória nas eleições de 1988.
Benazir Bhutto recebeu a Folha para uma entrevista exclusiva na última terça-feira em sua residência oficial, na capital Islamabad.
Religiosa, carregava o véu indicado pela tradição muçulmana e vestia o "shalwar" e "khameez", calça e túnica típicas do Paquistão.
Em dezembro de 1987, Bhutto se casou com o empresário Asif Ali Zardari e hoje tem três filhos, com idades entre 3 e 7 anos. "Busco sempre colocá-las para dormir."
Eleita a mulher mais elegante do planeta em 1988 por uma revista francesa, Benazir Bhutto prefere os trajes típicos paquistaneses e uma leve e discreta maquiagem.
O primeiro governo de Benazir Bhutto durou 20 meses e caiu em 6 de agosto de 1990, sob acusações de corrupção, nepotismo e abuso de poder. Três anos depois, ela venceu as eleições e voltou ao governo.
No mês passado, a rivalidade regional com a Índia ganhou da CIA (agência de inteligência dos EUA) o rótulo de uma das principais fontes de instabilidade para o planeta.
Paquistão e Índia negam dispor de arsenal nuclear. Mas avalia-se que os dois inimigos precisem de pouco tempo para montar suas armas atômicas caso desejem.
Bhutto ainda enfrenta guerras internas. Violência interétnica sacode Karachi, a maior cidade do país.
Ao terminar a entrevista, ela se despede com um sorriso amável e se encaminha para presidir reunião do Comitê Estatal de Energia, onde é a única mulher em um batalhão de 20 homens.

Folha - Em janeiro, Brasil e Índia assinaram acordo de cooperação nuclear, que, segundo os países, destina-se a fins pacíficos. Esse acordo preocupa o Paquistão?
Benazir Bhutto - O Brasil terá seus próprios motivos para assinar tal acordo com a Índia. Mas no Paquistão estamos profundamente preocupados com a questão da proliferação (de armas nucleares).
Estamos muito preocupados com relatórios baseados em informações de satélites que indicam que a Índia está se preparando para um segundo teste nuclear.
O programa (Brasil-Índia) pode ser pacífico, mas estamos muito preocupados com a natureza do programa nuclear da Índia.
Folha - A imprensa americana publicou reportagens sobre a venda de material nuclear da China ao Paquistão. Essa transação ocorreu?
Bhutto - Tais reportagens não correspondem à verdade. Estou muito preocupada com a histeria contra o Paquistão no momento em que melhoram nossas relações com os EUA. Acreditamos que esses vazamentos deliberados buscam tirar a atenção da Índia.
Paquistão e China têm um acordo nuclear com fins pacíficos. A China está construindo para nós uma usina nuclear. A usina está aberta à inspeção internacional.
Folha - Recentemente aumentou a tensão na região de fronteira entre Paquistão e Índia. Há uma ameaça real de mais uma guerra?
Bhutto - A disputa pela região da Caxemira já se prolonga há alguns anos. O povo da Caxemira deseja um plebiscito para definir seu futuro. Mas, infelizmente, a Índia decidiu esmagar o levante da Caxemira com uma força brutal.
Fiquei alarmada ao saber que nesta semana houve um atentado contra dois líderes da Caxemira.
Eliminar adversários não é solução. Eu sei disso pelo exemplo do meu pai, que foi morto.
Mas não há ameaça de conflito com a Índia num futuro próximo.
Folha - A sra. disse que idéias não morrem. Quais são as suas?
Bhutto - Eu acredito num Estado moderno e progressista. Sou contra o extremismo (religioso).
Tenho lutado por democracia. O Paquistão teve muito pouca democracia em seus 50 anos. Nós temos enfrentado ataques de extremistas que acreditam que uma mulher não deveria ser primeira-ministra.
Folha - Como a sra. conseguiu se tornar primeira-ministra numa sociedade islâmica?
Bhutto - Os paquistaneses têm uma mentalidade aberta. Meu pai foi premiê do Paquistão, então eu tenho um sobrenome reconhecido. Depois do seu martírio, eu entrei na política, fui presa várias vezes, fui para o exílio.
Tive a sorte de pertencer a um país muçulmano no qual as pessoas são altamente politizadas.
Folha - Como enfrentar a ameaça do fundamentalismo islâmico no Paquistão e em outros países?
Bhutto - Queria dizer que a palavra fundamentalismo não é apropriada. É um termo do Ocidente para descrever extremismo.
No Paquistão, o movimento para fundar nosso país era liberal. Os extremistas se alinharam com as forças da opressão e do terror e ficaram ainda mais desacreditados.
Não há uma ameaça militante no Paquistão no plano popular. A ameaça extremista vem de estruturas institucionais.
Recentemente houve uma tentativa de derrubar o governo, que previa assassinar o presidente e a primeira-ministra. Os organizadores desse ato eram militares inspirados pelas idéias extremistas.
Folha - E o extremismo religioso no exterior?
Bhutto - Externamente, o extremismo religioso tem causas diferentes. No Irã, ele veio na ditadura, quando o povo iraniano não podia realizar mudanças pela paz.
As pessoas eram atraídas pelas mesquitas, os únicos locais onde podiam se reunir livremente.
O extremismo proporciona uma imagem muito ruim ao Islã e prejudica a causa muçulmana.
Folha - O que o seu governo tem feito para concretizar suas idéias?
Bhutto - Nós lançamos o programa de ação social mais ambicioso da história do Paquistão.
Também abrimos a sociedade paquistanesa. Em 1988, antenas parabólicas e aparelhos de fax eram proibidos. Agora vamos introduzir a Internet no Paquistão.
Fomos criticados. Forças extremistas disseram que estávamos abrindo o país à obscenidade.
Folha - As mudanças afetam a situação da mulher?
Bhutto - As mulheres no Paquistão eram frequentemente vistas como propriedade do homem.
Um dia, uma amiga me disse que ela nunca recebia almoço até que seus irmãos tivessem terminado de comer. Fiquei chocada.
Vi depois como mulheres eram levadas a casamentos forçados, obrigadas a ficar em casamentos quando tratadas com brutalidade.
Eu realmente sinto que a minha entrada na vida política do Paquistão se transformou num modelo para mulheres paquistanesas.
Folha - Quais as principais ameaças ao planeta no fim de século?
Bhutto - Sem a Guerra Fria, as reações a conflitos regionais não são tão rápidas quanto deveriam ser. A Bósnia mostrou isso.
Acho que o maior desafio para o mundo é trazer o mesmo vigor que existia nos tempos da Guerra Fria.
Outro desafio é a pobreza. Para permitir que várias nações se viabilizem, precisamos tratar da dívida externa. Não defendo que as dívidas sejam canceladas, mas acho que as nações que resolvam seus problemas devem ser ajudadas.
Folha - Qual a posição do Paquistão no que se refere à reforma do Conselho de Segurança da ONU?
Bhutto - Estamos preocupados com a eventualidade de a reforma do conselho levar à diferenciação entre países. Será que os critérios significarão a inclusão de países que violaram resoluções da ONU?
Folha - A sra. se refere à Índia?
Bhutto - Sim. A Índia tem desrespeitado resoluções da ONU e interferido nos países vizinhos.
Folha - O Brasil é um bom candidato para o Conselho da ONU?
Bhutto - Quando os critérios forem estabelecidos, então poderei responder a sua pergunta.

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