São Paulo, segunda-feira, 4 de março de 1996
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Verão acaba e está cada vez mais diferente

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quando vocês ergueram a cabeça sobre o azul turquesa do mar e gritaram para o barco: vimos a mãe d'água, pensei aquela frase de Beckett: acabou, acabamos.
Lá, a mãe d'água chegava em agosto, queimando a pele, fechando o verão. Aqui era quarta-feira de cinzas e havia vestígios de chuva nas águas da Ilha Grande: galhos, folhas, dois troncos, creio.
Não há como voltar atrás. Zarpamos para março com a mesma determinação do sudoeste empurrando a nuvem, armando a chuva duas milhas na frente. Ressaca, fantasias rasgadas, volta às aulas. Não há tempo para lulas frescas, impossível parar na praia dos crentes, longas saias molhadas na barra. Acabou, acabamos.
Devíamos dizer isto para Pat Buchanan. Ele não quer só mais conservar, quer voltar atrás, aos gloriosos anos 50, à família de sete filhos, ao tempo em que os imigrantes eram brancos, europeus, "da nossa cultura". Mas com a mesma determinação do barco tocado pelo motor Volvo, da nuvem tangida pelo sudoeste, o mundo caminha para a frente, fluxos de capitais, negros e mexicanos concentrando ao sul do sonho americano.
E dizer para o governo cubano que derrubou os Cesnas e voltou à velha tensão de sempre. E logo agora que o bloqueio estava para ser levantado, na segunda eleição de Clinton. Dizer para os intelectuais brasileiros hesitando diante do mergulho nas águas pretéritas, no peito o mesmo apoio deslumbrado à pátria da revolução. Por acaso, é revolucionária a burrice?
Dizer aos caras do Hamas que explodem bombas, matam e acontecem, tentando deter o relógio da história. Aos extremistas de Israel que assassinam ministros e alvejam letras da canção da paz.
Vamos entrar na chuva -o piloto adverte- e logo os pingos grossos caem nos olhos, quase não vemos o caminho, seguimos aos saltos as costas batendo na fibra do barco. Naufrágio é a perda do horizonte mas seguimos por instinto, buscando a silhueta das montanhas. Não há como voltar atrás.
Mas eles tentam. Agora é a Internet, a censura. Estão à caça do obsceno em todos os monitores. Não percebem que liberdade de expressão e economia tornaram-se irmãs gêmeas.
Censura em informática são as máquinas quebradas na infância da revolução industrial.
Onde estamos? Aqueles vultos são esqueletos dos navios da Verolme? Ouço a voz com sotaque de Boutros Ghali, simpático senhorio que vem nos cobrar o aluguel pelo espaço que ocupamos no mundo: US$ 43 milhões. Se mudarmos para a cobertura do Conselho de Segurança, com vista para os grandes conflitos, o preço vai subir.
Chove forte ainda e lá adiante, no rumo de Parati está a usina nuclear, cercada de barreiras caídas. Para onde fugiremos se caem tantas barreiras e são tantos os perigos dessa estrada? Pelo mar?
Aos poucos vemos a praia, o cais, só faltam formigas de asa, tanajura, para gritarmos como o poeta: "Zeta, chegou o inverno". Resta o sal na pele, a estação escorregando no limo das pedras, entra as algas. Quando vocês ergueram o rosto no azul turquesa e disseram: "Mãe d'água, o passado subitamente se condensou: lama, ruínas, cardumes nervosos, águas cristalinas, dedos de crianças explorando o polvo abatido na pedra, acabou o verão". E não sabemos como será o próximo. Se pelo menos pudéssemos acreditar como Buchanan, voltar algumas décadas atrás na Ilha Grande, construir um barraco, a canoa, plantar.
Camus disse que o sol lhe ensinou que a história não era tudo, mas a miséria abriu seus olhos para o que havia embaixo do sol.
Ensinaram-me que a história muda e o mito da permanência foi construído pela contemplação das estações que se sucedem.
O que acontece agora, quando as estações também se transformam, agora que acabou a história natural?
Volta às aulas, trabalho. Pois bem, aceito o seu conselho. E tento sobreviver até o próximo verão.
PS: A Folha tem publicado com insistência que o livro "O Que é Isso, Companheiro?" tem algumas incorreções históricas. A base dessas notícias é o exemplar anotado pelo próprio embaixador Charles Burke Elbrick.
No livro, afirmo que ele ganhou de presente um livro de poemas de Ho Chi Min, o líder vietnamita. Ele escreveu: "wrong" (errado), e afirma que o presente foi "O Livro de Pensamentos de Mao".
Os livros da casa do sequestro eram de minha biblioteca pessoal. Como minha única propriedade são livros, posso dizer que só entendo eles. Esse especialmente foi comprado na Livraria da Vinci, que frequento desde aquela época.
Onde escrevi que o embaixador levou uma pancada leve, ele desenhou vários pontos de exclamação. Baseei-me em dados exteriores para afirmar que a pancada foi leve: não foi preciso ponto, ele não desmaiou etc.
Mas, nesse caso, uma vez que não pretendo voltar ao assunto, considero que a opinião dele deve prevalecer sobre a minha. Quem sabe se a pancada foi leve ou pesada é quem leva a pancada.
Se o livro for alguma vez reeditado, farei essa correção.

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