São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Memórias escritas a lápis

BORIS FAUSTO

Nos primeiros meses do ano passado, tão logo se anunciou que existia um "Diário" de Getúlio Vargas e que ele seria em breve publicado, a expectativa cresceu entre os iniciados. Havia boas razões para isso. Os escritos de quem surge como a maior figura política brasileira deste século provavelmente contribuiriam para esclarecer e rever caminhos decisivos da história do país.
Vista sob o aspecto formal, a publicação do "Diário" corresponde à expectativa. A gente do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas, fez um ótimo trabalho de organização de texto, incluindo um apêndice muito útil, onde se encontram um índice temático e de títulos, e um índice biográfico, roteiros indispensáveis para se enfrentar mais de 1.000 páginas de texto.
No que diz respeito ao conteúdo, para quem esperava muito, o "Diário" é uma decepção. Nada ou quase nada existe nele que leve a uma revisão histórica, nem lá se encontram reflexões sobre os grandes temas da história brasileira, entre os anos 1930-42, por parte daquele que foi seu protagonista. O leitor atravessa ou folheia dois grossos volumes sem ver tematizadas as grandes opções políticas e sociais de Getúlio, em sua visão pessoal. Exemplificando, ficamos sem saber como ele encarava a implantação de uma legislação operária, o desenvolvimento industrial, ou a criação do Estado Novo, que tipo de forças teve de enfrentar na realização de um presumível projeto nacional de grandes proporções.
Entretanto, a decepção deriva do pressuposto de que Getúlio deveria ter escrito um "Diário" para a posteridade, narrando e interpretando as grandes decisões e as tendências de seu tempo. De fato, teria sido um documento histórico de enorme valor, por mais que os memorialistas tendam a embelezar suas carreiras. Mas não foi isso o que Getúlio quis fazer e, a partir daí, nasce uma questão básica: por que e para quem Getúlio escreveu essas anotações, ao longo de quase 12 anos?
Em primeiro lugar, convém lembrar que a preocupação em escrever um diário -obsoleta, nos dias de hoje- não tinha nada de excepcional na geração de Getúlio e nas que o sucederam. Era principalmente uma forma de verbalizar, para si mesmo, sentimentos e paixões que não se podiam expressar abertamente. O "Diário" de Getúlio é em parte isso, mas não é só isso, até pela óbvia razão de que se trata de um texto escrito por um chefe de Estado.
Getúlio não se dirige preferencialmente à posteridade e a escrita a lápis diz muito nesse sentido. Entretanto, de algum modo tem um olho nela. Começa a escrever em um momento histórico, quando se deflagra a Revolução de 1930; ao explicar sua motivação, afirma que vai anotar os fatos de sua vida "como quem escreve apenas para si mesmo". Em resumo, o "Diário" é ambíguo, tendo uma face voltada para quem escreve e outra, meio oculta, voltada para o público.
Como o primeiro movimento predomina, o texto contém, em especial, coisas interessantes sobre a personalidade de Getúlio. Não que ele se abra por inteiro; pelo contrário, como diz em uma observação de maio de 1939, "gosto mais de ser interpretado do que me explicar".
Da tentativa de interpretação, emergem alguns traços definidores. Em primeiro lugar, um conservadorismo que se distancia de seu principal centro irradiador na época, a igreja católica. Só muitos anos depois de casado no civil, como anotou no "Diário" (14/12/34), Getúlio veio a casar-se no religioso. Nem por isso as relações familiares regulares deixam de preocupá-lo. Insiste em que seus auxiliares próximos não sejam desquitados ou casados pela segunda vez (15/12/39), embora abra uma exceção para Francisco Campos, um dos ministros de sua preferência. Não será demais intuir que esperava deles o comportamento convencional que ele próprio se impusera: casos esporádicos ou mesmo amores explosivos eram compreensíveis, desde que a regra da discrição fosse cuidadosamente observada.
Há no "Diário" marcas do preconceito de Getúlio com relação aos judeus. É chocante ler a anotação de que decidiu proibir o visto consular nos passaportes dos judeus; isto em dezembro de 1940, quando a obtenção do visto era uma questão de vida ou morte. Em um contexto menos dramático, ao fazer uma anotação sobre Assis Chateaubriand, elogia o jornalista, afirmando porém que ele tinha em tudo um interesse monetário, quem sabe porque tivesse "sangue judeu". Convém lembrar, porém, que a associação sem disfarces, entre judeu e dinheiro, deitando profundas raízes na cultura cristã ocidental, era comum na época, tanto em personagens rotulados de direita quanto de esquerda.
Não localizei no "Diário" qualquer afirmação positiva com relação ao regime democrático. Soberania popular, pluralidade partidária, rotatividade no poder, liberdade de expressão, não são postulados do pensamento de Getúlio.
Nada há de surpreendente nisso, quando sabemos que as anotações cobrem um período caracterizado pela aparente falência da democracia liberal e pela atração exercida pelos regimes autoritários ou totalitários.
A experiência política de Getúlio, até 1945, não passa pelos embates democráticos. Entre 1930 e 1945 foi ditador ou presidente eleito pelo voto indireto. No contexto prévio à sua eleição indireta pela Assembléia Constituinte em 1934, revela resistências em ceder ao Congresso parte de seus poderes e em aceitar os limites impostos pela Constituição que está para ser votada: "Não tenho dúvidas sobre as dificuldades que vou enfrentar, e talvez seja preferível que tome outro rumo, pois já começo a acreditar que, com tal instrumento de governo, será perdido o esforço" (14 a 16/6/34).
Adversário sem contemplação dos comunistas, Getúlio não parece muito assustado com eles. As anotações do "Diário" confirmam a tese de que tinha conhecimento da preparação do levante de 1935. Depois da prisão de Prestes, em 1936, considera que a campanha movida do exterior pela sua libertação tem por objetivo desacreditar o Brasil. O líder comunista "não me parece tão perigoso como dizem ou como talvez ele próprio se julgue: perigosa é a legenda que criaram em torno de seu nome".
Em contraste, Getúlio revela simpatias pelo integralismo -"uma forma orgânica de governo e uma propaganda útil no sentido de disciplinar a opinião" (1935)-, mas não confia nos integralistas. Pouco antes do golpe de 1937, quando estes lhe eram úteis, Getúlio anota, após um encontro, que se entendeu bem com Plínio Salgado, "caipira astuto e inteligente". Nem tão astuto, nem tão inteligente. Com se sabe, após o golpe, Getúlio cortou-lhe as asas e colocou na ilegalidade os integralistas, assim como as outras formações partidárias.
É comum chefes de Estado apelarem para bruxos e astrólogos, tentando cortar ansiedades e descobrir o que o futuro lhes reserva. O exemplo latino-americano mais notável é o do sinistro Lopes Rega, conselheiro de um Perón envelhecido e de Isabelita. Getúlio não apela para essas forças, mantendo os pés na terra, como bom racionalista. Fica espantado com a credulidade de Adhemar de Barros, quando este lhe conta, em dezembro de 1938, seus contatos com os antepassados, nas sessões espíritas, mostrando-lhe pedras que teria recebido dos mensageiros do espaço. Declara-se pouco supersticioso, incluindo apenas, entre suas superstições, a simpatia pelo número 13. Mesmo assim, em momento difícil, durante a Revolução de 1932, parece alentado pela informação de que o vidente Sana Khan prognosticara, aliás erradamente, a derrota paulista, em poucas horas.
O "Diário" permite reconstruir algo da vida cotidiana de Getúlio, para além dos infinitos despachos, audiências, presença em festividades oficiais. Os historiadores interessados nas formalidades e nas informalidades do poder encontrarão uma pista curiosa, numa anotação de novembro de 1932, ocasião em que Getúlio vai a pé ao cinema, acompanhado apenas de um ajudante de ordens. Na volta, toma um táxi e indaga do motorista sua reação à medida que determinou a mistura de álcool à gasolina.
Deixo de lado a paixão pela "bem-amada", prato suculento já bastante explorado pela mídia. Compondo seu lazer, além do cinema, aparecem o teatro, o Jockey Club, excepcionalmente uma caçada. O governo de Getúlio assinalou a época de ouro dos cassinos, dentre eles o legendário Cassino da Urca e o Quitandinha, em Petrópolis. Entretanto, o jogo não o seduz; quando muito gasta parte de um domingo, em julho de 1934, entretendo-se (ou aborrecendo-se) a jogar inocentes partidas de dominó com dona Darcy. A grande atração de Getúlio, a partir de fins dos anos 30, foi o golfe, a tal ponto que, em vários dias, há uma única anotação no "Diário": "golf". Tanto quanto o charuto, esse esporte compõe uma imagem presidencial associada à riqueza, o que não impediu e até ajudou, pelo distanciamento, a reforçar os traços da figura poderosa de "benfeitor dos pobres".
O esporte das massas não lhe desperta maior interesse. Anota a atuação do Brasil na Copa do Mundo de 1938, uma indicação de que a Copa atraía já todas as atenções nos centros urbanos do país. Chega a endossar a versão do torcedor no empate contra a Tchecoslováquia; mas, quando o Brasil é eliminado pela Itália, não participa da indignação geral contra a arbitragem. Guardando distâncias, observa que a derrota "causou uma grande decepção e tristeza no espírito público, como se se tratasse de uma desgraça nacional".
Algumas práticas políticas, marcadas pelo clientelismo, nos soam familiares: mal instalado o governo, nos primeiros dias de fevereiro de 1931, o ex-presidente Epitácio Pessoa vai a Palácio pedir uma concessão de serviços para seu genro; restaurado o regime constitucional, deputados desfilam nas audiências, solicitando empregos e favores para a família ou para seus eleitores.
Essas referências são significativas não no sentido de se concluir que nada mudou nesse terreno, ao longo de mais de 50 anos, mas para se observar como as mudanças se processam mais lentamente nessa área, em comparação com as transformações sócio-econômicas que ocorrem no país.
A ênfase posta neste ou naquele registro dos acontecimentos, a omissão de fatos importantes do ponto de vista histórico não são produtos do acaso, mas de um recorte talvez inconscientemente realizado por Getúlio. A meu ver, tudo aquilo que não lhe causa maior inquietação merece poucas linhas, como ocorre, por exemplo, por ocasião do golpe de 1937. A 7 de novembro, refere-se à implantação de uma ditadura como um dado inexorável: "Não é mais possível recuar. Estamos em franca articulação para um golpe de Estado". Depois, engloba os dias 9 e 10 de novembro em um só conjunto, limitando-se a relatar, laconicamente, fatos como o fechamento do Congresso e o "Discurso à Nação", proferido pelo rádio, na noite do dia 10.
Em contraste, veja-se o tratamento dado ao início do movimento de outubro de 1930, à revolução paulista, cujos desdobramentos não eram previsíveis. No último caso, Getúlio anota, ao longo dos meses, as operações na frente de combate, deixando transparecer sua inquietação.
Dentre as questões a que alude o "Diário", duas têm destaque especial: as relações do presidente com os militares e a política externa. Ao assumir o poder em 1930, Getúlio contrasta o que seria a posse de Júlio Prestes com a sua, associando sua vitória a signos militares: "Em vez de o senhor Júlio Prestes sair dos Campos Elíseos para ocupar o Catete entre as cerimônias oficiais e o cortejo dos bajuladores, eu entrei de botas e esporas nos Campos Elíseos, onde acampei como soldado...". Nem por isso suas relações com o Exército, ao longo dos anos, são tranquilas. As anotações do "Diário" abundam nas referências a conspirações, às ameaças de demissão, às contínuas pressões e queixas, por razões pessoais, ideológicas, ou de interesse corporativo.
Muitas vezes, Getúlio dá a impressão de enfeixar em suas mãos o poder decisório; por exemplo, na reunião do ministério que trata do rompimento de relações com os países do Eixo (janeiro de 1941), o germanófilo Dutra é obrigado a engolir a decisão presidencial. Mas nem sempre é assim. Em maio de 1939, faz uma anotação dramática: "Estou a mercê do Exército, sem força que o controle, e sem autoridade pessoal e efetiva sobre ele. Estou só e calado para não demonstrar apreensão". Não é possível afirmar que este estado de espírito tenha perdurado, porém convém lembrar o óbvio: em 1945, Getúlio foi derrubado do poder com a colaboração de Dutra e Góes Monteiro, embora estes cuidassem para que a queda fosse amaciada.
No plano da política externa, há excepcionalmente algo de novo sobre os acontecimentos. Ao mesmo tempo, Getúlio assinala preferências, idiossincrasias, e a passagem de uma atitude de neutralidade ao alinhamento na luta contra o nazi-fascismo. Detesta particularmente os ingleses, "eternos exploradores". Em dezembro de 1940, um contingente armado de um cruzador inglês invade um navio brasileiro, na costa fluminense. Ao anotar a resolução do atrito, Getúlio deixa transparecer seus sentimentos, o que não é muito comum no "Diário": "Eu estava resolvido a uma atitude extrema para desagravar o país, mas não desejava tomá-la; compreendia os prejuízos que poderia acarretar e preferia uma solução pacífica".
Por outro lado, se simpatiza com os regimes fascistas, repele as investidas nazistas no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul; queixa-se das pressões americanas, mas tem uma impressão muito favorável de Roosevelt, com quem se encontra em novembro de 1936. Em contraste com a retórica e o bacharelismo imperantes no Brasil, de que Getúlio não escapava em seus discursos, o presidente americano o impressionou por muitos traços, dentre eles por ser "um orador claro, simples e cheio de imaginação, despido de hipérboles criollas". Afinal, a decisão de romper relações com os países do Eixo surgiu como decorrência de um cálculo pragmático, desses em que Getúlio era mestre.

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