São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Elogio do dissenso

FRANCISCO DE OLIVEIRA

O governo presidido por um dos mais eminentes intelectuais do país produziu um consenso por baixo, um conformismo intelectual quase servil, que é um dos sintomas mais perigosos na sistemática desmontagem dos direitos que vem processando. Aqui os direitos sociais e trabalhistas apenas foram "relutantemente reconhecidos" (parafraseando o título do livro de Anthony Woodtiyiss sobre os direitos do trabalho no Japão) e já se passa à guerra social, ora aberta e declarada, como na greve dos petroleiros, ora sofisticada nas reformas "constitucionais".
Mas a sede e a pressa de ir ao pote dos direitos é tanta que nem mais a aparência se guarda: o próprio presidente estimula o descumprimento da Constituição, ao aprovar o espúrio acordo entre industriais e o Sindicato de ("resultados") Metalúrgicos de São Paulo. Falsifica a relação entre legalidade e reforma, como se fosse um líder revolucionário. Em moral, isso se chamaria hipocrisia, mas em política isto se traduz simplesmente por dominação de classe.
Para abalar esse morno ambiente, dois livros de José Luís Fiori. Já pelo título, "Em Busca do Dissenso Perdido" diz a que vem; "O Vôo da Coruja" faz companhia ao primeiro numa lúcida e penetrante análise das raízes da crise do Estado brasileiro. Na verdade, o precede, pois se trata da tese de doutoramento de Fiori, na USP, em 1985. O leitor que quiser sair da pasmaceira geral vai se beneficiar extraordinariamente com as duas leituras, pois encontrará uma escrita brilhante e vigorosa, rigorosa e isenta de ranços: deliciosa como pão quente com manteiga.
Fiori é hoje, sem favor, um dos mais importantes cientistas políticos nacionais. Situa-se numa tradição que ancora profundamente a ciência política na crítica da economia política -vale dizer, na melhor tradição clássica, Marx e Weber, sobretudo-, fundindo quando necessário, e separando quando importante, ruptura, continuidade e movimentos conjunturais. Numa palavra, o modelo metodológico é o clássico "O Dezoito de Brumário", de Marx.
A combinação da "longue durée" com os impactos dos eventos da conjuntura é que lhe permite prever os extraordinários desdobramentos da crise do Estado desenvolvimentista -uma construção típica-ideal com os elementos das contradições das classes burguesas no Brasil de 30 até nossos dias-, matéria de "O Vôo da Coruja". Uma crise então apenas pressentida, que se julgava contornável pelo prolongamento do seu próprio padrão, vide Plano Cruzado.
A crise do Estado brasileiro constitui, pois, o "leitmotiv" de Fiori. Em perspectiva radicalmente oposta ao consenso -jornalístico, empresarial, político e acadêmico-, que vê a crise do Estado como consequência do seu gigantismo, abrindo o passo, intencionalmente ou não, às proposições neoliberais do Estado mínimo, Fiori situa o gigantismo em enquadramento inteiramente diverso. Simulacro periférico do "Welfare State", o Estado desenvolvimentista apoiou, induziu, financiou o crescimento e a industrialização, até o ponto de criar um extenso e poderoso setor produtivo. Ao contrário, o gigantismo aparece como uma consequência da crise, devido à predação financeira do Estado, por uma parte, e por outra ao simultâneo esfacelamento do autoritarismo e de seu produto mais acariciado, o desenvolvimentismo.
Esse aparente paradoxo é forte de consequências. Confundir a crise do Estado com gigantismo leva, como nas proposições neoliberais -que este governo aplica ao pé da letra- à sua desmontagem, sem resolver nenhum dos dilemas provocados pela derrocada do desenvolvimentismo. Na desregulamentação ferozmente levada a cabo vão de cambulhada os direitos "relutantemente reconhecidos", o que nos traz de volta ao autoritarismo em uma das duas formas históricas que ele apareceu na periferia: o populismo ou a ditadura pura e simples.
As últimas manobras do governo FHC com a liderança da CUT indicam que o "pêndulo" do seu governo -cuja teoria cabe a Giannotti- inclinou-se, desta vez, para o populismo. Mas pode voltar para o autoritarismo, como a greve dos petroleiros demonstrou. E provoca também crises financeiras como a que atingiu o Econômico e o Nacional, em que o remédio volta a ser a queima de recursos públicos, num movimento perverso que continua o padrão financeiro do Estado desenvolvimentista, sem desenvolvimento: privatiza-se o público, mas não se publiciza o privado.
O Estado autoritário foi, sempre, a forma política por excelência do Estado desenvolvimentista para romper os impasses da acumulação sem romper a velha relação de forças entre frações burguesas: foi assim em 30 e em 64. Uma renovada "fuga para a frente", não resolvendo os dilemas entre as próprias frações das classes dominantes: relembre-se o estranho pacto industrializante que manteve intocada a estrutura fundiária.
A crise do Estado brasileiro é, por conseguinte, a crise do Estado desenvolvimentista e de sua forma autoritária. Mas, num aparente paradoxo, ela se explicita dramaticamente somente na transição do autoritarismo para a democratização. A rigor, a "estatização" ou a "intervenção estatal" na verdade nunca se completou; citando Maria da Conceição Tavares, Fiori localiza essa incompletude do Estado desenvolvimentista no caráter passivo da centralização de capitais pelo Estado, cujo último e desesperado lance foi a tentativa de criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento na gestão Funaro, sob Sarney.
Tal esforço estava condenado de antemão, pois antes Delfim Netto havia estatizado a dívida externa e iniciado a letal "ciranda financeira" que levou de roldão tanto o acabamento do papel de capital financeiro do Estado quanto sua capacidade fiscal para continuar com a forma passiva de apoiar o desenvolvimento do setor privado. A "débâcle" iniciou-se nesse movimento de pinças entre fechamento do mercado internacional de capitais após a crise de liquidez do México, a estatização da dívida externa e sua sustentação numa dívida interna que desembocou na predação financeira do Estado.
Como Fiori bem salienta, a burguesia interna, que inclui as multinacionais, sempre vetou ao Estado o acabamento de uma centralização do capital financeiro que teria permitido escapar aos dilemas do Estado desenvolvimentista. Do que resultou uma inflação devastadora, obrigando aos clássicos purgativos FMI e, desde Collor, ao receituário completo da farmacopéia neoliberal.
"Em Busca do Dissenso Perdido" é uma coletânea de artigos (alguns inéditos), embora a arquitetura do livro dê a impressão de que os ensaios foram produzidos como partes de um todo. Mesmo "Ética e Política numa Sociedade Periférica" -à primeira vista deslocado no conjunto- revela-se uma reflexão das mais felizes, pois nele Fiori chama a atenção para o que é essencial em Weber: o utilitarismo, para produzir os reforços recíprocos que levaram ao êxito econômico, político e social das sociedades do Ocidente desenvolvido, o tipo-ideal "ética protestante e espírito capitalista", é impensável sem as "afinidades eletivas".
Sem isso, pode-se ter um espírito utilitarista capitalista, cujo móvel é o lucro, desprovido de qualquer ética, e o seu resultado mais provável será o capitalismo selvagem. O caso ibérico, no qual o Brasil se enquadra, mereceria, pois, um reparo: não é tanto a ausência do espírito de lucro, mas a ausência de uma ética da solidariedade que marca a selvageria das relações sociais.
No primeiro capítulo, Fiori repassa a "teoria latino-americana do Estado", vale dizer principalmente Cepal e os dependentistas e alguns afluentes. A meu modo de ver, a "pièce de resistance" é o capítulo "Para uma Economia Política do Estado Brasileiro", onde propõe e discute as questões anteriormente resumidas. Revisita a teoria da dependência, atualizada sob a ótica da globalização, e encerra o livro com uma devastadora crítica às posições do governo FHC.
Na avaliação da "Globalização e a Novíssima Dependência" e "Da Dependência ao Social-Liberalismo: a Bússola de Fernando Henrique Cardoso", Fiori não vê fratura entre as posições do presidente e sua produção sociológica sobre a dependência. Roberto Schwarz, em "Um Seminário de Marx" (Mais! em 8/10/1995), concordaria com essa conclusão; mas, talvez por generosidade com o antigo colega, vê nisso apenas realismo.
Fiori localiza uma "nova opção ético-política quando (FHC) abandonou o seu idealismo reformista para acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresário brasileiro, assumindo, simultaneamente, como um fato irrecusável, as atuais relações de poder e dependência internacionais. Depois de duas décadas de vida política, FHC abdica dos nexos científicos da história brasileira para propor-se como 'condotieri' da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, agora renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira" (pág. 239).
O espaço não dá explorar toda a riqueza dos dois livros. O leitor está convidado a descobrir o resto, e a tomar partido na controvérsia entre Fiori e Schwarz. Vale a pena, pelos dois.

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