São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Política não é o reino do 'tanto faz'

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A desilusão, o pessimismo e a perplexidade dos jovens são uma característica dos tempos atuais. As grandes esperanças e as relativas certezas da minha geração e da que se seguiu -a geração de 1968- estão mortas. A onda conservadora, que tomou conta do mundo desde os anos 70, deixou os jovens que emergiram para a vida adulta a partir de então ou desinteressados da política e da reforma social, ou então descrentes de que qualquer coisa possa ser feito.
Uma manifestação dessa atitude desesperançada foi o artigo que Otavio Frias Filho publicou nesta Folha (em 25/1/96), "Tanto Faz". Depois de fazer uma crítica aos políticos que não souberam ser fiéis às idéias generosas do tempo da luta contra o regime autoritário, Otavio afirma que "da Bolívia à Sibéria só existe uma fórmula de governo, no momento, em todo o mundo... Os partidos perderam função: a própria política não tem mais importância. Não existe divergência de idéias nem 'propostas alternativas', tanto faz quem está no governo porque alcançamos o estágio da 'administração das coisas' ".
No dia seguinte, Marcelo Coelho explicitou mais a perplexidade do companheiro de jornal. Gostaria de ver posições claramente distintas da esquerda e da direita, dos estatizantes e dos neoliberais. Como não as vê, conclui: "Minha impressão é que tanto 'neoliberais' quanto 'estatizantes' digladiam-se mais pela inércia das oposições passadas do que pela coloração presente de suas convicções".
Há uma diferença, entretanto, entre os dois. Enquanto que Otavio não tem definitivamente esperança, Marcelo as mantém acesas, tanto assim que termina seu artigo com a cobrança da utopia: "O debate torna-se em si mesmo conservador, entretanto, quando o tipo de sociedade que se quer construir não é questionado". Ainda bem. Queremos construir uma sociedade. Logo, afinal para Marcelo, não é verdade que "tanto faz".
Não é verdade, mas parece. Parece, porque a mensagem presente nos dois artigos é a de que o debate político perdeu vigor no mundo contemporâneo, que as oposições são mais retóricas do que reais, que a luta é pelo centro, como sugere Marcelo, ou por nada, como deixa implícito Otavio, já que não existem alternativas reais. Todos têm que seguir o mesmo caminho do ajuste fiscal, das reformas orientadas para o mercado, da busca da competitividade global -um caminho econômico que é trilhado em prejuízo dos direitos de cada indivíduo.
Contardo Calligaris, no Mais! (em 4/2/96), concordou com os dois jovens quanto ao fim da oposição entre esquerda e direita, mas discordou da atitude em relação ao problema adotada por Otavio e Marcelo. Ao invés da intransigência das idéias puras, sugeriu, estamos chegando ao tempo do "razoável". E pergunta: "Será que o 'razoável' não seria ele mesmo o valor novo e supremo que não sabemos reconhecer?".
Não creio. O razoável jamais será um valor supremo. Os homens sempre buscarão valores políticos maiores: a liberdade, a justiça social, o bem-estar. Mas sempre saberão, também, alguma coisa que meu pai me ensinou quando eu tinha nove anos. Perguntei-lhe o que era política, e ele, talvez pensando no estadista que foi Getúlio Vargas, respondeu: "É a arte do compromisso". Os homens estarão sempre dispostos a ceder em função do razoável, a fazer as concessões necessárias para que haja acordo entre as partes. Mas isto não significa que renunciem a suas aspirações maiores.
Na verdade, a solução para o problema que principalmente Otavio colocou de forma dramática não pode ser encontrada em características e tendências gerais da humanidade. Ao invés, é preciso perguntar por que as opções, de repente, se tornaram menores, dando a impressão de que não há mais alternativas? Quais os fatos históricos novos que tornam inevitável o ajuste fiscal, que impõem as reformas econômicas orientadas para o mercado, que assinalam a vitória da economia sobre a utopia?
Nos anos 50 e 60 não apenas a economia mundial crescia mais rapidamente, os padrões de vida claramente melhoraram em toda parte, mas também as opções eram ou pareciam muito maiores. A primeira e grande opção fora já realizada: o totalitarismo nazista havia sido derrotado; a vitória de democracia fora definitiva.
A outra opção parecia estar aberta a todos: a opção entre o capitalismo e o socialismo. E havia a grande esperança do desenvolvimento, o que se torna um objetivo de todas as nações -objetivo que agora parecia realizável, já que as taxas de crescimento nessas duas décadas nunca foram maiores na história. Objetivo que poderia ser alcançado por uma tecnoburocracia iluminada, sozinha, adotando ou a estratégia do planejamento do tipo soviético, ou em aliança com a burguesia, através das políticas macroeconômicas keynesianas e da teoria do desenvolvimento econômico.
Esta perspectiva otimista instalou-se nos anos 50 e atingiu seu auge em 1968. Nesse ano o fracasso da revolução estudantil de maio e a repressão da Primavera de Praga marcaram o fim de uma era. O fim dos anos dourados do desenvolvimento capitalista. O fim do consenso keynesiano. O fim da esperança tecnoburocrática na sociedade estatal de tipo soviético, que se tentava instalar em nome do socialismo. O fim do espaço fiscal para que o Estado pudesse realizar políticas sociais e implantar o "welfare state" nos países desenvolvidos e políticas desenvolvimentistas nos países em início de industrialização.
Os anos 70 foram dedicados ao processamento das novas realidades, os anos 80, à crise generalizada. Saímos do mundo em que tudo era possível para o mundo das limitações. A suspensão da convertibilidade do dólar, em 1971, os dois choques do petróleo, em 1973 e 1979, a crise da dívida externa, em 1982, e finalmente a queda do muro de Berlim, em 1989, foram os marcos do novo estado de coisas. O Estado entrava em crise fiscal em todo mundo. Nos casos agudos, chegava-se à hiperinflação. O Estado se imobilizava, a burocracia já não tinha discurso.
A esquerda democrática entrava em crise, não obstante ter sempre criticado o estatismo soviético. A direita renovava-se, modernizava-se, assumindo novos rótulos: neoconservadorismo e neoliberalismo. E apresentava uma receita universal para todos os problemas: o mercado no lugar do Estado. Assumia o monopólio do ajuste fiscal e das reformas orientadas para o mercado, ajudada pela dificuldade de grande parte da esquerda de compreender os novos tempos. Quando, na Espanha, em Portugal, na França, a social-democracia reconhecia a inevitabilidade do ajuste e das reformas, era chamada de traidora.
O Estado em crise, sem crédito, imobilizado, tornara-se o grande problema. Isto era verdade não apenas nesses quatro países, mas, em menor grau, em quase todo o mundo, inclusive nos países desenvolvidos. Só escapavam o Leste e o Sudeste da Ásia, cujos países haviam sabido evitar a crise fiscal. Para a maioria não havia saída senão aceitar a dura alternativa do ajuste e da devolução da coordenação da economia ao mercado.
Mas para sempre? Obviamente não. Mas nos termos dogmáticos propostos pelo neoliberais? Evidentemente não. O Estado mínimo dos neoconservadores é uma tolice tão grande quanto o Estado máximo dos estatistas. A crença de que as falhas do mercado são sempre menos graves do que as falhas do Estado é tão ideológica quanto a crença contrária. A suposição de que o capitalismo liberal nos levou ao fim da história, eliminando de vez a utopia socialista, é pelo menos ridícula. A direita e a esquerda, os conservadores e os progressistas, os defensores da ordem e os que estão dispostos a arriscar a ordem em nome da Justiça estarão sempre -graças a Deus!- digladiando-se até o fim dos tempos.
Mas digladiando-se com os mesmos argumentos e as mesmas propostas? Não. O mundo mudou. À crise fiscal do Estado, somou-se a globalização da economia, fruto do desenvolvimento tecnológico que barateou o custo dos transportes e das comunicações. Uma globalização expressa no aumento brutal da competição internacional. Uma globalização excludente, que colocou a nu a vantagem crescente dos detentores do conhecimento técnico e organizacional sobre os trabalhadores não especializados.
Uma globalização que reduziu ainda mais o espaço de manobra do Estado. Diante desses dois desafios -da crise do Estado e da globalização- é preciso reagir. É preciso não voltar a velhas soluções, mas encontrar novas. É preciso reconstruir o Estado fiscalmente, é preciso dotá-lo de novas instituições, para que ele possa voltar a promover o desenvolvimento, para que possa contrabalançar os efeitos concentradores da globalização.
Tanto faz? De forma alguma, Otavio. As convicções são no fundo as mesmas? Não creio, Marcelo. Nunca foi mais importante garantir aos governos governabilidade -capacidade política de governar. Nunca foi mais importante garantir aos Estados governança -a capacidade administrativa de serem governados. Decisões erradas deixam países para trás, levam-nos à estagnação e à crise que pode durar anos e anos. Tanto decisões ideológicas antimercado, quanto decisões dogmáticas pró-mercado podem ser terríveis.
Contardo Calligaris, em lugar dos extremos, propõe o razoável. Talvez. Mas não será melhor, ao invés, apostar sempre no ótimo? Mas de forma crítica, sem ilusões, reconhecendo os conflitos e as limitações reais? E sempre com a humildade de, quando o ótimo não for viável, fazer o compromisso para o possível? Sem negar o conflito, mas também sem levá-lo ao extremo? E -por favor, jovens- sempre mantendo a esperança!

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