São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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voando para o Rio

BARBARA GANCIA

Gil de Ferran tenta vencer hoje na cidade que tanto admira
Gil de Ferran, 'rookie of the year, 1995', ou seja, melhor piloto estreante no campeonato de Indy do ano passado, não tem fã-clube oficial. Ainda. 'Andei tendo pesadelos de que não vai aparecer ninguém lá na corrida do Rio para torcer por mim', diz ele.
Modéstia do moço. Hoje, no Rio, ao ser dada a largada da primeira prova de Indy em solo brasileiro, no circuito oval Emerson Fittipaldi, em Jacarepaguá, Gil de Ferran certamente terá a torcida verde-amarela ao seu lado. Afinal, ele é o atual vice-líder do campeonato -foi o segundo colocado na prova de abertura no circuito de Homestead, em Miami, depois de liderar boa parte da corrida. E, desde a morte de Ayrton Senna em maio de 1994, nenhum outro piloto brazuca competindo em uma categoria de ponta no automobilismo mundial teve tantas chances de lutar por um título.
No ano passado, Gil entrou chutando a porta no campeonato de Indy. Conquistou sua primeira vitória em Laguna Seca, fez a pole-position em Cleveland e, não fosse o "totó" do retardatário Scott Pruett, que o tirou da liderança da prova de Ohio, teria vencido duas corridas logo no ano de estréia na categoria.
Mas ele não merece um fã-clube próprio apenas pelos expressivos resultados que vem obtendo. Apesar dos 28 anos, Gil faz parte de uma estirpe de pilotos que desapareceu das pistas junto com os acirrados duelos travados entre Nelson Piquet e Nigel Mansell. A saber: Gil de Ferran é reconhecidamente um sujeito ultracorreto. Dentro e fora da pista, é famoso pelo bom comportamento.
Pacato
Não espere ver notícias nos jornais envolvendo o nome do piloto em bate-bocas com os colegas, em fofocas de escapadas extraconjugais ou em declarações bombásticas.
Espécie de Tony Ramos do automobilismo, Gil dificilmente se mete em controvérsias. "Sou um cara caseiro, pacato e diurno", admite. "E muito 'matter of fact'".
O uso de expressões em inglês, como "matter of fact", que em uma livre tradução significa ser factual, ter os pés no chão, é uma das poucas coisas que ele tem em comum com outros pilotos brasileiros que vivem fora do Brasil durante algum tempo. E esse traço nada tem a ver com o fato de que, no exterior, surgem poucas chances de se lustrar o vocabulário português. "De certa maneira, eu me considero cidadão do mundo", diz. E credita seu lado cosmopolita a uma exigência dos tempos atuais.
"Hoje em dia, com a abertura do Brasil e a globalização da economia, qualquer pessoa que trabalhe em um ambiente internacional tem de estar preparado para aprender a lidar de maneira produtiva com culturas e línguas diferentes", afirma Ferran, com a tarimba de um executivo que roda o mundo. "Mas o apego emocional é sempre com o país em que se passa a infância, em que se faz amigos, e nesse sentido, claro, me sinto totalmente brasileiro".
O brasileiro Gil de Ferran, nascido em Paris durante um estágio que o pai, o engenheiro Luc de Ferran, fazia na sede da Renault a fim de desenvolver para a Ford o projeto do Corcel, tem outros traços comuns aos pilotos galantes da era pré-Piquet e Mansell.
Régua no tênis
Não viaja acompanhado de nutricionista e massagista e não tem um preparador exclusivo para cuidar de sua forma física. "Ao longo de minha carreira, uma série de pessoas me aconselharam e eu acabei formando meus hábitos alimentares e meu treinamento físico de acordo com esses conselhos."
Gil não é chegado em malhação e só faz exercícios e corre meia hora ao dia porque a profissão exige. "Não sou fanático por ginástica, nem por outros esportes", diz. "Meu negócio é corrida de automóvel. É minha profissão, meu hobby e meu passatempo."
A paixão pelo automobilismo é antiga. Amigos da época do primário no colégio Santa Clara, em São Paulo, lembram que Gil costumava se "distrair" durante as aulas com uma régua enfiada na lateral do tênis, que ele mexia para a frente e para trás, como se estivesse trocando de marcha, enquanto imitava o ronco do motor.
Sua mãe, dona Ziza, confirma o amor precoce pela máquina. "Ele tanto pediu que ganhou seu primeiro kart aos cinco anos. Mas só o deixamos correr mesmo aos 16 anos, com a condição de que fosse bem na escola".
Gil foi bem na escola e, sobretudo, nas pistas, apoiado pelo pai, engenheiro e dirigente da Ford que fazia as vezes de mecânico, pela mãe, que dava de cronometrista, e inspirado pelo tio, Luiz Pitoco, corredor de Fórmula Super V.
Em 1983, Gil sagrou-se campeão paulista de kart e começou a vislumbrar a carreira profissional. Que tomou forma concreta e definitiva após três títulos consecutivos na Fórmula Ford, em 1985, 1986 e 1987.
Na esteira de campeões como Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Ayrton Senna, Gil interrompeu no terceiro ano o curso de Engenharia na faculdade Mauá e foi tentar a sorte na Inglaterra.
A partir daí, sua carreira tomou um curso bem diferente da de outros pilotos brasileiros, que correm no exterior apoiados por patrocinadores nacionais. Gil quase nunca dependeu de patrocínio vindo do Brasil. "De cada dez situações-chaves na minha carreira, oito envolveram empresas e pessoas de fora", diz ele.
O ano de 1990 foi decisivo para Gil de Ferran. Enquanto a maioria dos pilotos da Fórmula 3 inglesa apostava no potente motor Ralt, aconselhado por um dos donos da equipe em que corria, nada menos do que o tricampeão mundial de Fórmula 1, o escocês voador Jackie Stewart, a quem considera seu "mentor e mestre", Gil optou pelo mais fraco Reynard. Acabou vencendo três corridas e forçando seus adversários a adotarem o motor Reynard no ano seguinte.
A fidelidade pagou juros e dividendos. Em 1994, apesar de ter sido apenas o terceiro colocado no Campeonato Internacional de Fórmula 3.000, foi através da Reynard e da família Stewart que Gil conseguiu vaga em uma das equipes de ponta da Indy, a Penzzoil Racing.
Desde 1990, quando o piloto brasileiro assinou com a Paul Stewart Racing -que o campeão escocês toca junto com o filho Paul-, para correr o campeonato inglês de Fórmula 3, Gil de Ferran se considera amigo pessoal dos "ex-patrões".
O último Reveillon, ele passou esquiando em Aspen, no estado americano do Colorado, com Paul Stewart e a mulher dele, Victoria.
Gil ainda mantém contato com o pessoal da antiga escuderia. E não descarta a possibilidade, em um futuro próximo, de se transferir da Indy para a Fórmula 1, a fim de ocupar uma das vagas da equipe que Jackie Stewart e o filho estão montando na categoria mais importante do automobilismo mundial -e que deve estrear nas pistas no ano que vem.
Casamento
"Para mim, a grande pergunta não é se a equipe dos Stewart fará sucesso, mas quando isso irá acontecer", pondera. "Se esse convite se concretizasse na hora certa, seria algo que eu levaria muito a sério."
De quebra, o envolvimento com a Paul Stewart Racing acabou resultando em outro benefício colateral. Em dezembro de 1993, Gil casou com Angela Buckland, 31 anos, a relações-públicas da equipe.
E ele se revelou um maridão politicamente correto. Usa aliança na mão esquerda e, por ter tomado uma surra da culinária inglesa nos primeiros tempos de Grã-Bretanha, tornou-se o cozinheiro oficial da família de Ferran. "Ele aprendeu a cozinhar bem melhor do que eu", diz Angela, em um português razoável para quem só é obrigada a falar a língua do marido nas poucas semanas por ano em que visita a família dele no Brasil.
Como todo brasileiro que nutre o conhecido sonho da casa própria, Gil tratou de instalar a família, não em Miami, onde residem a maioria dos pilotos tapuias que correm na Indy, mas em uma confortável casa comprada nos arredores da cidade de Indianapolis, no enfadonho Mid West americano.
"É um local tranquilo e central para o Gil", diz Angela. "Mas assim que nossa filha ficar um pouco maior, pretendemos nos mudar para Boston ou Nova York, cidades bem mais cosmopolitas." Claro, se o pai é cidadão do mundo, a filha tem de ser igualmente "global".
É a filha, Anna Elizabeth, de um ano e dois meses, e não Gil, a grande estrela da família. O piloto passou boa parte desta entrevista balançando orgulhosamente a pimpolha no colo. E nos circuitos da Fórmula Indy, Anna Elizabeth é conhecida e reconhecida por todos. O público que acompanha as transmissões de corridas de Indy pela TV também já está acostumado a ver Gil ao lado da mulher e da menina. "Ela adora estar com outras pessoas e até já se acostumou ao barulho dos motores", diz Angela.
Quando acontece algum acidente em uma prova de Indy, a corrida é interrompida pela bandeira amarela, que impede ultrapassagens e força os carros a reduzirem a velocidade para cerca de 70 milhas por hora. Nesses momentos, o telespectador pode se dar ao luxo de levantar e ir dar uma olhada na geladeira. Mas os pilotos não tem descanso.
Êxtase
"Ninguém relaxa durante a bandeira amarela", diz Gil. "Esse é o momento de se replanejar a corrida, de trocar informações com os boxes, de pensar como passar o cara que está na tua frente."
Não há perigo de perder a concentração? "Eu nunca perco a concentração", garante nosso piloto "matter of fact".
E manter os pés no chão quando se está girando em um circuito oval a velocidades superiores a 400 km por hora é uma tarefa que só pode mesmo ser empreendida por quem tem cola no sapato. Em sua autobiografia, o mentor de Gil, Jackie Stewart, descreve a sensação de dirigir um carro de corrida como "algo parecido com fazer amor com uma mulher". Segundo Adriane Galisteu, Ayrton Senna falava em ejaculação dentro do cockpit do carro.
Para Gil, as coisas são bem mais prosaicas. "A sensação de êxtase ao se guiar um carro em alta velocidade é fantástica e é exclusiva do piloto. É por isso que eu corro", concede. "Mas não chega a tanto."
Quem sabe, neste domingo, Gil de Ferran não mude de idéia? Afinal, ele estará correndo em Jacarepaguá, onde obteve sua primeira vitória na Fórmula Ford, e fará sua primeira corrida em terra brasilis depois do sucesso obtido no exterior.
"Não tive oportunidade de conhecer a pista do Rio antes dos treinos, mas estou animado", afirma. "Além de gostar de Jacarepaguá, por ter vencido lá pela primeira vez, eu adoro o Rio de Janeiro".

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