São Paulo, terça-feira, 19 de março de 1996
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Maldita seja a companhia telefônica do Rio

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A vida tem muitos mistérios. Belo lugar-comum, só comparável ao "viver é muito perigoso" de Guimarães Rosa. Pois tem muitos mistérios mesmo, principalmente a vida de um pobre homem de país atrasado. Por exemplo, por que a garrafa grande de água Lindóia tem uma tampinha de plástico que não abre nunca? Já tirei sangue da unha tentando abri-las. Pior: apertando a garrafa, para poder girar a tampa, ela explode como bomba gelada em nossa barriga. Por quê? Além da paralisia do Congresso, sofro com as humilhações do consumidor.
Por que o fio dental brasileiro Jonhson's esgarça nos dentes? Na América, não. Por que as Gilletes brasileiras cortam menos que as americanas? Por que os iogurtes brasileiros são tão mal embalados, ao contrário do luxo dos americanos? Por que a Diet Coke americana é melhor que a nossa? Tantos martírios atormentam a vida de um urbanóide menor como eu. Por que as canetas Bic falham tanto, porque vazam no bolso, deixando uma mancha eterna? Por que os tubos de creme dental ou de pomadinha vêm pela metade, com os fabricantes ganhando no vazio? Como as multinacionais nos desprezam. Os gerentes devem pensar: "para quem é, bacalhau basta". E, supremo mistério de um carioca, por que os telefones do Rio nunca funcionaram?
Eu sou do tempo em que os telefones eram pretos e as geladeiras brancas, como dizia o Rubem Braga. Pois, desde esse tempo, o mistério existe. Por que os telefones funcionam em São Paulo, em Londrina, em Porto Alegre, e no Rio não? O grande feito da ditadura militar foi a telefonia. Aqui, não. Você liga para o Amapá para falar com o Sarney de Tóquio numa boa, mas quero ver você falar de Copacabana com Botafogo, às 5h da tarde. Que será isto? De onde vem esta vocação que o Rio tem para o erro?
Será que a resposta não estaria nos postos bêbados que estão sendo inaugurados em Ipanema? (A prefeitura instalou postes tortos, caindo como torrinhas de Piza na cabeça das pessoas) Por quê? Serão o símbolo do estado mental carioca? Será que é uma tradição cultural, "coisas nossas como o samba, prontidão e outras bossas"? Eu sou do tempo do "trote", quando o sujeito gastava uma preciosa linha para perguntar ao outro: "Por favor, penico de barro dá ferrugem?" Era o trote. Pois hoje temos a novidade dos trotes espontâneos, quando telefonar virou uma aventura cheia de imprevistos.
As linhas do Rio têm um comportamento humano neurótico. Elas não tem o mecanicismo confiável das paulistas ou paranaenses. No Rio, as linhas trabalham pelo que eu chamarei de "impregnação progressiva". São mulheres difíceis. Nunca dão de primeira. São linhas "coquetes", linhas histéricas. Você liga, não completa. Aí, você começa a sofrer. Seu afeto ou ódio são essenciais na hora da ligação. Você não pode considerar aquilo apenas uma máquina. Surge todo um relacionamento, jeitinhos, maus tratos. Há telefones sádicos e outros masoquistas. Uns gostam de bater, outros gostam de ser espancados. A maioria no Rio é dos "sádicos", insensíveis à nossa ansiedade. E há um mistério que talvez a Telerj (este templo de perdição) possa decifrar: por que só se faz a ligação na terceira tentativa? Por que três vezes, sempre? É a tal da "impregnação". É como um espermatozóide fecundando um ovo, como uma idéia se formando na central do sistema nervoso. Mas, se a ligação se completa, ó admirável estrangeiro!, isto não quer dizer que atingirás o contato com o seu amigo, seu amante ou seu "miché". Provavelmente, será engano. É normal. Comunicação sem barreiras de classe ou raça. Você pode ligar para sua mãe e atender um crioulo no botequim de Bonsucesso. Por que não? Linhas democráticas.
Existe toda uma sabedoria (que os cariocas amealham no curso dos anos) no lidar com os aparelhos, que só se sofisticam por fora (ah, saudades dos negros de ebonite...). As campainhas eletrônicas (ah... saudades do triiim, triiim), memórias, feed backs, tudo fracassa diante da barreira do erro carioca.
Existe também a ciência dos barulhinhos. Por exemplo, há um indescritível ruído que mostra uma tendência "positiva" para a ligação. É um prenúncio de que o sinal virá, ou, se já tiver vindo, que a ligação se fará. Ou não. Há barulhinhos de todo tipo. Há os barulhinhos "punitivos" quando o assinante peca por excesso de otimismo. São roncos súbitos e pavorosos que podem te furar o tímpano. São lembretes de que estás no sub-país.
Há silêncios de treva quando tua aflição é urgente, há barulhinhos que denotam esperança, mas que tendem a se esfarinhar em nada. Quando a ligação se completa, há tilintares diferentes de campainha. Existem os bonitos, mas falsos que ninguém atende nunca. Existem os gagos, que se interrompem sem motivo. Eu, veterano de guerra, sei dizer, na minha competência, até quando vai dar "engano", ou "ocupado". Em geral, começa com um tilintar eufórico, nítido, que parece ignorar a precariedade da existência humana, logo corrigido pela sábia lição de uma frustração. Eu, do alto do meu saber, detecto tilintares que já prenunciam se há alguém em casa ou não. Mas isto é só para grandes especialistas.
Há a súbita interrupção da linha, em geral no clímax, no pino de uma conversa que vai dar certo: "Sim, claro, meu anjo...então...diz que me ama ainda!...". Negro silêncio, seguido do barulhinho triunfante. Ou, "Claro doutor...podemos fechar negócio...meu preço é..." Espaço sideral, buraco negro. E há o maravilhoso universo da linha cruzada. Oh, Deus, se alguém fizesse a sociologia da conversa de anônimos, ó que rosto do Rio de Janeiro daria para contemplar pelo negro fone. Na linha cruzada nunca se flagra o grande crime, nem o grande negócio, nem o grande adultério. No Rio, a linha cruzada dá o rosto derrubado da cidade com dois traços fundamentais: a lamentação e o rancor. Quase todas as linhas que eu ("ecouteur" contumaz) peguei narravam a angústia de alguém que clamava por justiça ou por amor. Era a desquitada sem pensão, a viúva sem afeto, mães aflitas, pequenos serviçais injustiçados, contínuos humilhados, aposentados sem rumo, viados sem carinho, tudo numa rede sinistra de solidão e desencontros.
Pela tristeza das linhas cruzadas, vemos a decadência do Rio, as encostas destruídas das almas, as vítimas de uma miséria existencial não suspeitada que se encolhe nos kitchinetes, barracos e botecos.
A Telerj me lembra o além-túmulo. Eu sou parte deste universo escuro de gente gritando "Alô? Alô", todos desesperadamente tentando alcançar algum sentido para suas vidas. Passamos a vida tentando uma felicidade, um contato imediato e nada. A Telerj é nossa morte. A Telerj é a afasia do Rio. A Telerj é nosso fracasso como cidade. Abaixo a Telerj, maldita seja a Telerj e seu cortejo de anjos decaídos e incompetentes, abaixo sua teia imunda de erros. Maldita sejas tu, companhia telefônica de bosta, com seus dutos e fios mergulhados nos esgotos da cidade. Que Deus te destrua, já que os homens te toleram.

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