São Paulo, quinta-feira, 21 de março de 1996
Próximo Texto | Índice

História da literatura mora nos "Arquivos Implacáveis"

FERNANDA SCALZO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Os "Arquivos Implacáveis" do colecionador e jornalista João Condé, morto no dia 14 de janeiro, ainda não têm destino certo.
São milhares de fotografias, caricaturas e documentos (entre cartas, bilhetes, depoimentos etc.) relativos a mais de 40 anos da literatura brasileira.
Nem os herdeiros do arquivo, os filhos do colecionador, sabem exatamente o que há escondido ali. Preocupada em divulgar esses documentos, a família de Condé ainda não sabe o que fazer com eles (leia texto ao lado).
Condé publicou durante 19 anos uma coluna de uma página na revista "O Cruzeiro" com o nome de "Arquivos Implacáveis". Antes, nos anos 40, a mesma coluna era publicada no suplemento "Letras e Artes" do jornal "A Manhã".
Carlos Drummond de Andrade, amigo de Condé, foi quem batizou a coluna: "Se um dia eu rasgasse meus versos, por desencanto ou nojo da poesia, não estaria certo da sua extinção; restariam os Arquivos Implacáveis de João Condé".
Esta máxima de Drummond aparecia como uma epígrafe à coluna todas as semanas.
Para fazer os "Arquivos", Condé ganhava (e às vezes furtava) originais, fotos antigas e todo tipo de curiosidades dos escritores.
Biografias divertidas
Uma das sessões dos "Arquivos" era a "Confissões", em que os escritores davam depoimentos sobre como foi que escreveram um determinado livro.
Outra, era o "Flash", uma biografia divertida (incluía o número do sapato ou do colarinho, entre outras informações) escrita por João Condé sobre algum escritor.
Na que escreve sobre Érico Veríssimo, por exemplo, fica-se sabendo que media 1,71 m, calçava 39 e usava colarinho 38; lia com prazer Eça de Queirós e "nunca viu fantasmas nem teve alucinações."
Com o tempo e a popularidade de sua coluna, cada vez mais Condé, que morreu aos 83 anos, recebia dedicatórias e cartas dos escritores.
O colecionador chegou a ter, em 1956, um programa na extinta TV Tupi, chamado "Os Arquivos Implacáveis na TV", dirigido por Carlos Thiré. No programa, Condé entrevistava escritores e lia trechos de romances ou poemas.
Além das pastas organizadas por escritores, os arquivos de João Condé contêm também uma série de manuscritos originais. Entre eles, o de "Fogo Morto", escrito por José Lins do Rego em 1945.
O prefácio de Otto Maria Carpeaux é datilografado, mas o romance foi todo escrito a mão. À medida que ia escrevendo, Lins do Rego levava seus originais para Condé ler. Este datilografava o texto, devolvia o original ao autor e guardava o manuscrito.
Tal era a adoração de Condé por manuscritos, que o poeta Drummond deu-se ao trabalho de copiar à mão todo o "Brejo das Almas", publicado em 1934.
Na dedicatória do manuscrito, escreveu: "A João Condé, -antecipador cordial de incerta posteridade- este exercício caligráfico de seu amigo Carlos Drummond de Andrade. 25/10/47."
Também fazem parte dos arquivos de Condé, os manuscritos de "Estrela da Manhã", de Manuel Bandeira, e "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, entre outros.
O colecionador tinha ainda o hábito de pedir que os escritores escrevessem suas "Confissões" na primeira página dos livros que lhe davam. Um exemplo é a dedicatória de Nelson Rodrigues na edição de 1948 de "Anjo Negro, Vestido de Noiva e A Mulher Sem Pecado": "Partindo do princípio de que meu único objetivo teatral é o escândalo, devo estar radiante com o destino do 'Anjo Negro'...", escreve o dramaturgo.
Edições Condé
Além de colecionador compulsivo, Condé também era editor. Publicou quatro livros excepcionalmente ilustrados: "Assombrações do Recife Velho", de Gilberto Freyre, com gravuras de Lula Cardoso Ayres; "10 Romancistas Falam de Seus Personagens" (1946), com textos de Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Jorge Amado, entre outros; "10 Histórias de Bichos" (1947), de Drummond, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, entre outros, e ilustrações de Axel Leskoschek, Di Cavalcanti e Tomás Santa Rosa; e "10 Poemas Manuscritos" (1945), de Drummond, Vinicius de Moraes, Cecília Meirelles, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Murilo Mendes, e ilustrações de Portinari e Santa Rosa.

Próximo Texto: Família quer divulgar o acervo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.