São Paulo, sexta-feira, 22 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Zoneamento corrompido

DALMO DE ABREU DALLARI

O zoneamento é atualmente um dos mais importantes instrumentos de planejamento do uso do solo urbano, visando equilibrar a preservação da qualidade da vida com o desenvolvimento de atividades necessárias ou úteis à população.
Como bem observa José Afonso da Silva em seu "Direito Urbanístico Brasileiro", o zoneamento é um "procedimento urbanístico, que tem por objetivos regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas, no interesse coletivo do bem-estar da população".
O que vem acontecendo na cidade de São Paulo em relação ao assunto merece divulgação e reflexão, pois mostra como um bom caminho, acolhido pela legislação, acaba sendo anulado pela corrupção administrativa, com a colaboração de políticos oportunistas e munícipes sem espírito público.
Quando foi elaborada a Lei Orgânica do Município de São Paulo os vereadores tiveram consciência da importância da matéria, fixando as seguintes regras:
1ª) o zoneamento deve ser estabelecido por lei; 2ª) se estiver em tramitação um projeto de lei alterando o zoneamento, será obrigatória a realização de, pelo menos, duas audiências públicas para discussão da matéria, antes da votação; 3ª) um projeto de lei visando qualquer alteração no zoneamento necessita do voto favorável de três quintos dos membros da Câmara para ser aprovado; 4ª) a legislação referente ao zoneamento somente poderá ser alterada uma vez por ano.
Apesar de todas essas cautelas, o zoneamento da cidade de São Paulo tem sido escandalosamente desrespeitado, em prejuízo da população, por meio de um artifício ilegal e imoral. O que vem ocorrendo no bairro de Vila Nova Conceição, residencial em sua quase totalidade, é bem ilustrativo disso.
Vários estabelecimentos comerciais se instalaram em ruas estritamente residenciais, mas sem o cuidado de ocultar suas atividades formalmente clandestinas. Um deles chega a colocar anúncios nos grandes jornais, comunicando a expansão de suas atividades.
Outros colocam grandes faixas nos postes e nas árvores do bairro, anunciando suas mercadorias e fornecendo o endereço. Muita gente fica sabendo que ali se exerce um comércio ilegal, parecendo que só os fiscais da prefeitura, obrigados a autuar os infratores e a tomar as primeiras providências para cessação da irregularidade, não conseguem enxergar o que se passa.
Denunciada a ilegalidade à administração regional, esta se mantém inerte e não aciona a procuradoria do município para o fechamento dos estabelecimentos clandestinos.
Em voz baixa, mas não muito, fala-se na regional que esses estabelecimentos gozam da proteção de políticos muito influentes junto ao prefeito.
Assim a ilegalidade permanece e, como já tem acontecido, daqui a pouco será apresentado à Câmara Municipal um projeto de lei contendo um "pacote" de alterações no zoneamento, degradando muitos bairros.
Invocando o fato consumado, pois os estabelecimentos já estão lá, com boa clientela, alega-se que seria injusto forçá-los a sair depois de se ter tolerado, passivamente, sua permanência. Audiências públicas poderão ser convocadas com publicidade bem menos visível do que a dos estabelecimentos clandestinos e o povo nem ficará sabendo que seu direito à boa qualidade da vida estará sendo fraudado, aparentemente por meio legal.
Isso tem um nome, corrupção, e não pode continuar acontecendo, em qualquer cidade, sob pena de desmoralização da Câmara Municipal, dos vereadores e dos princípios que devem reger a vida de uma sociedade democrática, honesta e civilizada.
Essa prática danosa é uma das principais responsáveis pela degradação da qualidade de vida, pois desaparecem os bairros residenciais; o movimento intenso de veículos, inclusive de caminhões, atinge a cidade inteira, tornando quase impossível a disciplina do trânsito e arruinando a pavimentação; a poluição sonora e visual elimina todos os traços de beleza e de harmonia.
Tudo isso porque os cuidados especiais que deveriam e poderiam ser tomados em relação a zonas especiais, com maior concentração de estabelecimentos comerciais e suas inevitáveis consequências, se tornam inviáveis quando o zoneamento é anulado pelos que deveriam defendê-lo e preservá-lo e a cidade é entregue ao caos.

Texto Anterior: LIMITES; CONVINCENTE
Próximo Texto: O tombamento torna a pintura invisível
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.