São Paulo, sábado, 23 de março de 1996
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A vingança da história

RUBENS RICUPERO

Na vaga de entusiasmo suscitado pela queda do muro de Berlim festejou-se prematuramente o fim da história.
Pela primeira vez desde a Revolução Russa de 1917, desaparecia da cena o desafio ideológico ao monopólio dos valores ocidentais da democracia representativa e da economia de mercado.
Após o excesso de excitação de um século de guerras e revoluções, deveríamos supostamente preparar-nos para um período de monotonia invariável e interminável.
Para nossa distração, sobrariam apenas os problemas técnicos de uma economia globalizada e determinante de toda vida social.
Ruanda e a Bósnia se apressaram em demolir o que havia de mais ingênuo e extremo nessa neo-utopia.
Era fácil, porém, descartá-las porque se tratava, nos dois casos, de áreas marginais e periféricas tanto em relação ao espaço da civilização como do ponto de vista do seu peculiar tempo anacrônico.
Os últimos dias se encarregaram, contudo, de continuar a desmantelar o castelo de ilusões a golpes de brutal realismo.
A exacerbação do sanguinário conflito na Tchetchênia e a recriação da União Soviética pelo Parlamento russo relembraram uma verdade que tem estado há séculos no coração da história européia.
Não é preciso, de fato, recorrer a pretextos ideológicos para avivar antagonismos que deitam raízes em antigas diferenças étnicas e nacionais.
Mais surpreendente talvez tenha sido o recrudescimento, após décadas em estado de dormência, da tensão entre a China e Taiwan.
Como na reprise de um velho filme, voltam às telas da televisão as cenas de bombardeio, de evacuação de ilhas, de porta-aviões norte-americanos rondando o estreito.
Um aspecto a reter desse retorno de fantasmas que se acreditava aposentados foi a revelação súbita da precariedade e insuficiência dos fatores econômicos para sustentar uma dinâmica de paz e estabilidade.
Bastou que se desencadeasse a crise para que, em questão de dias, se evaporassem mais de US$ 5 bilhões das ainda abundantes reservas de Taiwan.
Há cerca de quatro meses atrás, os países da Apec (Associação de Cooperação Econômica do Pacífico), que incluem a China e os Estados Unidos, decidiram numa reunião realizada no Japão, constituir uma zona de livre comércio nas primeiras décadas do século próximo.
Saudou-se na época a decisão como a prova que se esperava do advento definitivo da nova era do predomínio do Pacífico.
Não faltaram também, é verdade, vozes para assinalar a persistência na região de graves problemas de segurança sem solução, assim como para realçar a fragilidade do nível de sua integração política, em contraste com a Europa, por exemplo.
Não custa lembrar que, durante a Guerra fria, os únicos conflitos quentes para valer ocorreram na Ásia.
Aliás, as guerras da Coréia e do Vietnã não deixaram de ter uma relação indireta com o grande surto econômico que se registrou depois, como havia igualmente sucedido no Japão e na Europa.
Disso tudo a lição a tirar é que não há nada de determinista ou irreversível em fenômenos econômicos como a globalização.
No apogeu vitoriano, o grau de integração do comércio mundial e do movimento de capitais foi igual ou maior do que o atual. Tudo se perdeu com a Primeira Guerra e com o que veio depois.
Longe de ser autônoma e toda-poderosa, a economia continua refém da política e da história.
E estas -sempre que se pretende ignorar seus problemas, varrendo-os para debaixo do tapete- vingam-se destruindo o que se quis construir sem elas.
Afinal, como lembra o provérbio português, "ódio velho não cansa".

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