São Paulo, domingo, 24 de março de 1996 |
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O pensamento que resiste à ordem
ANTONIO NEGRI
Este código é transmitido e ensinado nas boas escolas, é critério para uma boa educação e essencial para prestar concursos e, hoje, pouco a pouco está entrando e sendo consolidado na informática. Este código não é banal, mas complexo: histórico e progressivo pode apresentar-se de forma linear ou dialética, mostrar paradigmas diversos e conflitantes, singularizar ou variar conforme as várias disciplinas do saber; mas de qualquer forma o espetáculo montado é sempre o mesmo. Mas o que é "doxa"? Um sistema ordenado de interpretação do mundo, uma "historia rerum gestarum" consolidada, uma lógica do passado que justifica o presente e pretende aprisionar o tempo futuro no seu sistema. Quando, por exemplo, no pensamento único da pós-modernidade, declara-se o "fim da história" e se coloca a impossibilidade de alternativas ao "estado atual das coisas existentes", estamos falando de "doxa"... seja com o desesperado desconforto dos últimos heideggerianos, seja com os passeios da "doxa" pelo tweed escocês dos filósofos analíticos. Quero dizer com isso que o pensamento pós-modernista é, sob esse aspecto, a coisa mais antiga e repetitiva que conheço: "doxa", pura e simplesmente "doxa", código, justificação do presente, fechamento do futuro, conservação, pensamento das elites dominantes. Polícia de idéias Passemos a outro argumento, ou melhor a um argumento que parece ser outro. Anos atrás um príncipe filósofo (desses que a França ainda produz e admira) declarou: "A reforma da polícia é o grande laboratório da modernização da administração pública". Ouvindo repetir essa máxima setecentista, a minha impressão foi a de que o príncipe naquela ocasião estava particularmente atento àquela filosofia que leva à "doxa". Era o final dos anos 80, perto da derrubada do Muro, quando muitos tiveram a impressão de que a história realmente tinha acabado. Ao mesmo tempo, outros filósofos (para não falar de príncipes) proclamavam a mesma "verdade". Para John Rawls, a questão era consolidar o consenso contratual: quando, à margem do sistema, algo resiste, o que fazer senão impor a ordem? Quanto a Rorty, entre a ironia e o cinismo, o que se tratava de exprimir era a hegemonia da democracia sobre a filosofia (isto parece descartar a utopia). De forma menos torta Vattimo convidava a esquerda democrática a reconhecer a política e todas as suas instituições como princípios do saber. A "Polizeiwissenschaft" ressurgia, não mais como um sussurro nos ouvidos dos poderosos, mas como linguagem comum. E por que não? Uma vez que o pensamento único reformou a interpretação do real reconduzindo-a à "doxa", porque não fazer da polícia além de um órgão de administração também um órgão do pensamento? E vice-versa: uma vez alcançada a convicção de que a polícia é um órgão do pensamento, porque não deixar cair essa dignidade na polícia como órgão de administração? Por outro lado, na sociedade em que entramos, ou na qual estamos entrando (pós-fordista na organização do trabalho social, pós-moderna nos valores culturais, liberal sob o ponto de vista da organização política) o poder não pode equacionar entre "doxa" e polícia. De fato, essa nossa sociedade é um cenário cada vez mais imaterial na qual os serviços e a comunicação recolocam, cada vez com mais eficácia, as relações mercantis e o trabalho intelectual fica hegemônico do ponto de vista da produção de valor -é difícil pensar um poder, portanto uma polícia, que trabalhe fora do controle da "doxa". Foucault tinha compreendido isto perfeitamente quando caracterizou a nossa época como sendo uma passagem do regime disciplinar para um amplo modelo de controle dos cidadãos e das consciências. Devemos nos perguntar se esse quadro aqui apresentado é factível a médio prazo. Existem os que acreditam que isso não passa de mais uma bobagem reacionária. Pode ser. Parece-me, porém, mais interessante perguntar se esses mesmos novos elementos da constituição social que levaram filósofos e príncipes a determinar essa figura de domínio, não acabem por sabotá-la e destruí-la. Quero dizer que provavelmente a intelectualidade de massa produtiva ou a liberdade que dela deriva não só comecem a determinar crises para a "doxa" como acabem levantando barreiras intransponíveis ao controle e à polícia. Quero dizer que a hegemonia da "historia rerum gestarum" provavelmente vai se opor ao gosto da "res gestae": assim como a atividade se opõe ao trabalho, e este à exploração. Provavelmente a afirmação de Deleuze não seja ilusão se for assim transformada: "A minha foi uma das últimas gerações assassinada a golpes de polícia". Tradução de Simonetta Persichetti. Texto Anterior: Os inimigos do processo de pacificação do Oriente Médio Próximo Texto: Santo André tem hoje Titãs e Pato Fu Índice |
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