São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 1996
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Comércio exterior é foco de tensão com EUA

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Apesar da tensão ter diminuído após a reunião ministerial hemisférica de Cartagena, Colômbia, encerrada há uma semana, diplomatas brasileiros ainda mostram indignação com atitudes dos EUA anteriores ao encontro.
Os dois países têm discordâncias ostensivas sobre o calendário, a natureza, a abrangência e as formas de implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Mas o tom de algumas críticas feitas por influentes integrantes do governo Clinton ao Brasil ultrapassou, no entender da diplomacia brasileira, os limites do tratamento cordial entre países amigos que se desentendem.
Na Embaixada do Brasil em Washington, teme-se que o estilo truculento da burocracia do comércio exterior norte-americano possa até pôr em risco as relações gerais entre os dois países, que estão numa fase excelente.
O que mais irritou o Brasil foi uma declaração de Charlene Barshefsky, segunda pessoa mais importante do USTR, o órgão do governo dos EUA encarregado de comércio exterior, em Bogotá, no dia 8 de março.
Em clara referência ao Brasil, Barshefsky afirmou que "relapsia (reincidência no erro) substantiva, má-fé tática e irresponsabilidade processual" podem minar os esforços para a construção da Alca.
Estrela ascendente
Barshefsky, uma advogada de 45 anos, é uma das estrelas ascendentes do governo Clinton, por ter conseguido extrair do governo chinês um compromisso de acabar com a pirataria intelectual, embora, na prática, tal compromisso não tenha resultado em muita coisa.
A revista "The New Yorker", a preferida dos intelectuais "new age" norte-americanos, publicou há duas semanas um perfil de 11 páginas de Barshefsky, ilustrado com fotos dela feitas pela badalada Annie Leibovitz.
Barshefsky liderava a delegação norte-americana ao encontro de vice-ministros do continente que preparou a conferência de Cartagena. Sua atitude em Bogotá foi considerada arrogante e petulante por diplomatas brasileiros.
Num relatório interno sobre a reunião de vice-ministros, a Embaixada dos EUA em Bogotá, com o aval do USTR, diz que ela foi caracterizada "pela intransigência do Mercosul e pelo obstrucionismo brasileiro".
Conferência de 97
A sensação de que o episódio Barshefsky não foi isolado cresceu quando os EUA deixaram prosperar a candidatura da Costa Rica para hospedar a reunião de ministros de comércio do hemisfério em 97.
No encontro anterior, em Denver em 1995, a proposta brasileira de que a conferência de 1997 se realizasse em Belo Horizonte havia sido aprovada por aclamação. Mas nos meses seguintes, a Costa Rica se propôs como opção.
Na embaixada brasileira em Washington, a impressão é de que os EUA insuflaram na surdina a pretensão costa-riquenha para tentar chantagear o Brasil e obrigá-lo a mudar suas posições sobre a Alca.
No fim, em Cartagena, os EUA acabaram apoiando Belo Horizonte em 1997 e Costa Rica em 1998. Mas esse episódio também reforçou a idéia de que os norte-americanos têm agido de forma pouco leal no encaminhamento da Alca.
Natureza da Alca
Um dos desentendimentos entre os dois países é sobre os modos de se chegar à Alca. O Brasil acha que a Cúpula das Américas em Miami, em 1994, deixou claro que isso aconteceria com base nos acordos regionais existentes.
Os EUA preferem evitar esse caminho dos "building blocks" (blocos de construção) porque seu poder de barganha é muito maior quando negocia com países individuais do que em grupos, como o Mercosul.
Outro ponto de divergência é sobre a natureza da Alca. Os EUA querem que os acordos de integração hemisférica sejam mais abrangentes do que os acertados para a formação da Organização Mundial do Comércio, exceto em alguns assuntos de seu interesse, como produtos agrícolas.
O Brasil rejeita essa tese por achar prematuro tentar ir além quando os países ainda estão empenhados em implementar o que foi acertado na OMC.
O terceiro desacordo é sobre a abrangência da Alca. Os EUA buscam vincular a integração comercial ao estabelecimento de padrões trabalhistas e ambientais para o hemisfério todo.
O Brasil acha, com o apoio do Mercosul e de quase toda a América do Sul, que a vinculação do comércio, em especial a condições de trabalho, induz ao protecionismo e à erosão de sua competitividade no mercado internacional.
Cronograma
Finalmente, os EUA querem acelerar o processo de implantação da Alca e o Brasil prefere ir mais devagar. O argumento brasileiro é de que o trabalho até agora realizado em Denver e Cartagena ainda é muito preliminar.
Além disso, os países da América do Sul, empenhados há apenas pouco tempo em programas unilaterais de abertura comercial, precisam de tempo para que suas economias se adaptem a eles.
O Brasil acha temerário estabelecer datas que não possam ser cumpridas (e que coloquem o processo em descrédito) e que é melhor avançar com segurança até o objetivo de integração do hemisfério.
A experiência do Mercosul tem mostrado ao Brasil o risco de se atrelar a cronogramas muito otimistas: há enormes dificuldades para se aplicar na prática o que é negociado em conferências.
Temas explosivos
Além disso, se o Brasil voltar a crescer a taxas elevadas e consistentes até o final da década, como se prevê, temas como migrações de trabalhadores, infra-estrutura de transportes, cobertura previdenciária e outros podem se tornar explosivos no Mercosul.
Em vários itens, em especial no do cronograma, a Argentina, que em princípio deveria ser aliada incondicional do Brasil, tem tido posição ambígua, por razões de conveniência de política interna.
Em Cartagena, no entanto, a Argentina acabou fechando posição com o Brasil, em especial depois que os EUA resolveram vincular progressos nas negociações bilaterais sobre produtos específicos sobretarifados nas importações norte-americanas ao processo de integração hemisférica.
Clinton
A conjuntura política doméstica também ajuda a explicar em parte o açodamento norte-americano na questão da Alca. O governo Clinton fez do comércio uma de suas prioridades absolutas.
Um amigo pessoal de Bill e Hillary Clinton, o advogado Mickey Kantor, foi escalado para dirigir a política de comércio internacional do país e o tem feito com poderes quase imperiais, embora seu estilo de negociação com o Brasil não seja tão bruto como o de sua subordinada Barshefsky.
Além dele, outros dois personagens importantes na Casa Branca estão envolvidos no processo: Thomas McLarty, melhor amigo do presidente desde o jardim-da-infância, e Hugh Rodham, irmão da primeira-dama.
McLarty, que tem um filho que morou em Belo Horizonte, tem sido uma espécie de "czar" da América Latina desde que Clinton foi obrigado, por necessidades políticas, a tirá-lo da chefia de seu gabinete, onde ele era considerado ingênuo demais para Washington.
Disputa eleitoral
Rodham tem grandes ambições políticas na Flórida (em 1994 concorreu na eleição para o Senado e perdeu). É ele quem está fomentando a idéia de uma reunião de cúpula entre EUA e Mercosul para este ano, em Miami.
Essa cúpula, que conta com a simpatia do presidente argentino Carlos Menem, é vista pelo Brasil como um risco: por interesse retórico, ela pode resultar em compromissos com datas consideradas irresponsáveis pelo Brasil.
Apesar da prioridade que dá ao tema, comércio é uma das áreas em que Clinton enfrenta mais críticas na campanha presidencial.
O Nafta (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio) foi um dos assuntos prediletos do ultraconservador Pat Buchanan. Os problemas para implantá-lo são uma dor-de-cabeça para Clinton.
Mercosul
Outro motivo para os EUA quererem apressar a Alca é que a influência do Mercosul está crescendo. Em junho, o Chile vai se associar a ele. Em 1994, Clinton anunciou que o Nafta absorveria o Chile e isso não aconteceu ainda.
É claro que os EUA também têm razões estratégicas para suas posições sobre a Alca. Para eles, a médio e longo prazo é fundamental manter a liderança econômica e comercial do hemisfério.
Por razões estratégicas também, o Canadá pode vir a ser o melhor aliado do Brasil: uma Alca mais interdependente ajudaria a diluir a preponderância dos EUA na economia e na cultura canadenses.
A conferência de Cartagena teve resultados em geral favoráveis para o Brasil e ajudou a desarmar um pouco as prevenções dos EUA contra o país. O conceito de "building blocks" foi mantido, não se definiu data para o estabelecimento da Alca, as questões ambientais serão examinadas por um grupo de estudo hemisférico só depois de setembro, quando a OMC chegar a suas conclusões sobre o tema.
A oposição vigorosa de outros países em Cartagena à idéia de vincular trabalho e ambiente ao comércio parece ter mostrado aos EUA que o Brasil não está sendo obstrucionista, mas sim intérprete dos pontos de vista dos vizinhos.
Apesar das tensões terem diminuído, não há dúvida de que a Alca será uma questão difícil nas relações futuras entre Brasil e EUA, que pareciam livres de obstáculos há apenas alguns meses.

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