São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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A psicanálise dos mitos

ROBERTO CAMPOS

"O Estado é o mais frio dos monstros."
Friedrich Nietzsche

"Nada supera em importância a redução do chamado custo Brasil", o que "...implica a redução do tamanho do Estado e dos gastos públicos". Não se pode resumir melhor a situação brasileira do que nessas poucas palavras da estimulante "Psicanálise do Pensamento Neoconservador", de Eduardo Mascarenhas (Ed. Objetiva, 1995).
À experiência de psicanalista bem-sucedido, acrescenta ele também a de político (é hoje deputado federal pelo PSDB do Rio de Janeiro), e nos dá uma visão sintética e extremamente clara das muitas ilusões e dos auto-enganos que formam a confusa, mas renitente, ideologia nacionalista-estatizante. A essa ideologia, a que apropriadamente chama de "pensamento neoconservador", se devem essencialmente as dificuldades em que se encontra o país.
Os trinta "pontos de fixação" a que Mascarenhas reduz os paradigmas implícitos, os mitos, as lendas e a falsa consciência do complexo de idéias das esquerdas corporativas e do "progressismo" e do populismo nacional-estatizante de fato nos oferecem um completo giro do horizonte. O Brasil precisa deixar as fixações que lhe fizeram perder a compreensão dos seus problemas concretos, rompendo os véus da alienação que o mantêm preso a concepções de décadas passadas e que, em última análise, servem apenas às "novas classes" dos clientes do Estado.
Interessante é que Mascarenhas, ao partir de um enfoque globalizante da psicanálise -mais amplo do que em geral se costuma associar a esse campo-, se coloca naturalmente dentro da problemática contemporânea.
De fato, do fim da Primeira Guerra a 1980, o pensamento contemporâneo esteve predominantemente condicionado por uma série de paradigmas implícitos que priorizaram o ente coletivo, o Estado, como o árbitro supremo da sociedade, muito acima da liberdade do indivíduo. Assim, como quer que fosse entendido -como o Partido, a coletividade de nacional-socialista, o poder do fascista, os autoritarismos e os "dirigismos" dos anos 30-, esse ente abstrato todo-poderoso assumia um caráter em boa parte mágico, uma encarnação do sobrenatural na roupagem dos novos tempos.
Isso se compreende diante das traumáticas experiências da guerra e do pânico mundial provocado pela Grande Depressão dos anos 30. E foi com a Revolução de 1930 que o Brasil entrou nessa onda. Houve então, como observa Mascarenhas, um câmbio de paradigmas. O Estado pareceu então ser o instrumento da transformação do mundo -um mundo nesse momento assustador- pelo homem.
Depois da Segunda Guerra a perspectiva global foi, durante mais de 30 anos, regida por três vetores principais: o desejo de evitar as penosas experiências dos anos 30, a expectativa universal de acesso aos bens materiais que o progresso econômico e tecnológico punha ao alcance do homem, e o medo de uma guerra nuclear, a catástrofe do gênero humano. Isso quis dizer, nos países desenvolvidos ocidentais, o Estado do Bem-Estar Social; na periferia da União Soviética e em alguns países em desenvolvimento, as experiências socialistas, e no plano mundial, uma bipolarização em campos armados sempre potencialmente à beira do conflito.
Keynes, nos anos 30, oferecera uma explicação teórica que parecia justificar a intervenção dos governos na economia: quando o dinheiro deixa de circular (quando as pessoas, por receio, preferem guardá-lo) interrompe-se o fluxo dos negócios, reduzindo-se a "demanda agregada", causando eventualmente uma recessão. A suposição era de que os governos, gastando mais do que arrecadavam, podiam "reflacionar" a demanda e aumentar o emprego.
Isso foi posto em prática, empiricamente, a partir de 1933, pelo regime nazista, com grande êxito, e com menos êxito, pelo "New Deal" de Roosevelt. A URSS, que então iniciava os seus Planos Quinquenais, não passou pela crise. A isso, caberia acrescentar que durante a Segunda Guerra, ingleses e americanos utilizaram, com bons resultados, métodos matemáticos sofisticados de programação. Pareciam assim disponíveis os instrumentos necessários para uma ação eficaz do Estado.
Nos países então ditos "subdesenvolvidos" -mais de cem surgidos do espólio colonial- projetava-se, naturalmente, um enorme desejo de dar o grande salto que os aproximaria do modelo, ao mesmo tempo invejado e ressentido, dos industrializados. E as idéias de esquerda eram tentadoras: por um lado, o progresso tecnológico e econômico da URSS parecia bem mais rápido do que o dos "capitalistas ocidentais", e por outro, era fácil culpar os "colonialistas" e "imperialistas" por todos os males do subdesenvolvimento.
Mas as economias socialistas começaram a "ratear" depois de 1964, e as crises dos anos 70 -detonadas pelo cartel dos subdesenvolvidos exportadores de petróleo- ameaçaram assumir proporções incontroláveis. O sistema financeiro explodiu completamente fora de controle dos governos, voltando, de certo modo, à velha ordem liberal anterior a 1914.
Nenhum país individualmente conseguia, com suas próprias medidas de política econômica, preservar-se dos problemas: inflação combinada com recessão -o fenômeno novo da "stagflação"-, desemprego, desequilíbrios do balanço de pagamentos. Foi-se por água abaixo a auto-suficiente noção de que a "sintonia fina", isto é, políticas macroeconômicas de inspiração keynesiana, bastariam para assegurar preços estáveis, bom nível de emprego, crescimento e equilíbrio externo. E, para os países em desenvolvimento não auto-suficientes em petróleo, foi o fim das ilusões do desenvolvimento fácil liderado pelo Estado.
De repente, todos descobriram a importância dos preços relativos, da poupança elevada, da eficiência econômica e do comércio internacional. Os países em desenvolvimento que melhor desempenho tiveram -notadamente os "tigres asiáticos"- foram exatamente os que mais firmemente insistiram na eficiência do mercado.
O Brasil, no entanto, ficou para trás. Apanhado pela recessão mundial de 1980-82 (a mais severa desde 1930), mal começara a sair do buraco quando, em 1985, estagnou, intoxicado pelos mitos nacional-corporativos, e pelo distributivismo clientelístico e populista. Estes chegaram ao auge no carnaval constitucional de 1988 -quando os regimes socialistas já estavam havia anos em dificuldades sem saída e, em breve, com a queda do Muro de Berlim, desabariam de vez.
É estimulante que Mascarenhas, embora não economista, tenha compreendido o papel dos grandes ciclos tecnológico-econômicos primeiro analisados por Schumpeter, uma concepção bem mais rica, para o nosso tempo, do que o foco estreito do keynesianismo. E particularmente relevante para nós, porque o Brasil, com seu enorme estoque de fatores produtivos ainda subutilizados, tem um imenso potencial de crescimento se formar capital humano e se abrir à tecnologia e aos investimentos externos.
A fixação nacionalista, o Estado-totem, o apego ao voluntarismo distributivista, a sacralização das empresas estatais, o mito do interesse estratégico, o da "construção do mercado interno", o dos "modelos econômicos alternativos", o das "conquistas sociais" (como se salário fosse questão de decreto!), o bestialógico sobre o "capitalismo selvagem", a mistificação da "reforma agrária" e a onipotência da "vontade política" são outros tantos fios da teia de alienação que nos impedem de realizarmos o nosso potencial...

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