São Paulo, segunda-feira, 1 de abril de 1996
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Delírio vegetariano em tempo de vaca louca

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Sou vegetariano." Você precisa aprender esta frase na língua de todo país que visitar. Há quem a diga com orgulho, há quem olhe ao redor como se fizesse um solene discurso de propaganda e os que, como eu, dizem o texto com a discrição cuidadosa de quem pergunta onde é o toalete.
Ser vegetariano não significa necessariamente bradar cruzes na porta de uma churrascaria aos gritos: "Arrependam-se, pecadores, a taxa de colesterol vai explodir."
Carne de vaca e maconha talvez causem danos à saúde, mas tudo indica que dose letal de ambas são cinco quilos jogados do vigésimo-quarto andar, diretamente na cabeça do consumidor.
Admito que, talvez no passado, tenha defendido a causa vegetariana. Nunca fui radical, e agora, que os carnívoros se encontram diante dessa tragédia da vaca louca, sinto-me como aquele personagem do Nelson Rodrigues que vê seu time ganhar de dois a um, com um de pênalti roubado.
No fundo de minha geladeira há um queijo chamado Vaquinha Louca, e ninguém mais quer comê-lo, apesar do sorriso que ela ostenta no rótulo. O próprio templo do hambúrguer, o McDonald's, lançou uma opção vegetariana.
O mundo dá rápidas voltas. A vaca preta e branca tremendo na tela não é nada. O grande susto é o nome da doença que dá nas pessoas: Kreuzfeldt-Jakob. Todos temem doença com um só nome. Alzheimer, por exemplo.
Outro dia vi um artigo de um escritor americano que tinha esta doença na família e ele passava parte do tempo se lembrando de coisas como o nome de uma atriz de um filme, a rua onde morava sua tia, tudo isto para se certificar de que não estava também perdendo a memória, um dos mais graves sintomas anunciando a chegada do mal.
Kreuzfeldt-Jakob dá a sensação de um cerco inexpugnável. Você escapa do Kreufeldt e está lá o Jakob esperando na esquina.
Pessoalmente, respeito todas as opções, mas nada impede que os radicais do lado de cá, diante das inúmeras churrasqueiras de Brasília, incomodados com o cheiro de carne queimada, cheguem à janela e berrem na solidão do Planalto: "Para presidente, Kreuzfeldt, para vice...".
Quando ouvi pela primeira vez esse nome "Síndrome da Vaca Louca", pensei em algo bem mais suave -vacas comendo cogumelos. Moro diante de uma churrascaria, e o pequeno jardim de meu apartamento dá direto para a chaminé. Era só sair, olhar travestis na batalha, aspirar um pouco daquela fumaça e escrever.
Escrever sobre Adriane Galisteu e Mirella Zacanini, ex-namoradas de ídolos mortos, Senna e Dinho, que agora publicam livros sobre eles. Furiosamente moralista, a imprensa da classe média (aliás, só existe esta) investe contra elas, sem ao menos admitir que representam um papel social, a viúva tirando o luto.
Antigamente isto se fazia em família. Mas Senna e Dinho morreram várias vezes. Milhares de pessoas foram ao enterro. As discretas viúvas de antes namoravam o vizinho e pronto, estava resolvida a superação do luto. Alguns festejando a vida que ressurgia, outros se apegando à morte como se a quisessem rainha eterna.
Senna e Dinho não foram enterrados discretamente, como os incômodos mortos anônimos. Era natural que a superação se desse em revistas de circulação nacional e que as viúvas, ao invés de se casarem com o vizinho, fossem vistas por milhares de olhos, buscando na beleza de suas formas o triunfo da vida.
A vida como ela é. Saio de "Despedida em Las Vegas" e vejo na TV Globo alguém perguntando se Nelson Rodrigues ainda é polêmico no Brasil. Ah, a TV Globo! Sharon Stone está cruzando as pernas sem calcinha e fazendo amor armada de um furador de gelo. Elizabeth Shue virando as costas e pedindo ao amante que faça um corte na sua bunda, e a Globo perguntando se Nelson ainda vai despertar polêmica.
Quem sabe a Globo tem razão, e vamos todos polemizar sobre a família suburbana do Rio, esquecer aquela cena de amor em Las Vegas, em que Ben diz para Sera: "Você quer mesmo que eu venha morar com você? Sou um bêbado, vomito muitas vezes..."
É isto. A cobra está fumando mas a vaca é que ficou doida. Agora é aguentar os chatos que sempre anunciaram: a carne vai acabar com o mundo. Da minha parte, vivo perto de uma churrascaria, logo estou salvo. Mas e os inocentes do filé à Chateaubriand, do bife com batata frita, do picadinho com chili?

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