São Paulo, quarta-feira, 3 de abril de 1996
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'Saco preto' do galã Fernando Henrique é falso

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No começo, pensei que a Folha tinha errado ao destacar na primeira página a frase do ministro Sérgio Motta, segundo a qual o presidente Fernando Henrique seria dotado de um "saco preto". A grosseria do julgamento, o falso ar de espanto da manchete, a ociosidade da polêmica a ser despertada, tudo indicava que uma frase desse tipo deveria ser relegada a um "box" no primeiro caderno.
Depois, convenci-me de que o jornal tinha acertado. Fez bem em assinalar com tanta ênfase a repulsiva retórica de Sergio Motta. Por uma simples razão, que quero analisar aqui: no Brasil, sempre que o governo ganha uma parada, ele cai na baixaria, torna-se escroto, baixo, pornográfico.
Ulysses Guimarães dizia que "o poder é afrodisíaco". Há uma ligação entre sexualidade e poder, muito das cafajestes, que cumpre interpretar aqui.
Quando Collor afirmou que tinha aquilo roxo, a frase ficou como um sintoma da histeria presidencial. Collor era uma espécie de janota querendo mostrar-se macho. O problema da masculinidade estava colocado desde sua ascensão ao primeiro posto republicano. Cabelos repartidos ao meio, perfil sofisticado, pele branca demais para ser de Alagoas, Collor tinha de dar mostras de machismo ao público, caso contrário ficaria na História apenas como almofadinha passivo diante das potências internacionais.
Fernando Henrique, não. É o galã moreno, o falastrão latino, o que se entrega à voracidade de Wall Street sin perder el charme jamás. Enquanto Collor, o belo, afrontava a opinião pública, FHC seduz o Exterior como se não precisasse desafiar ninguém.
Não sei quem é mais vaidoso, FHC ou Collor. Só sei que Collor era um vaidoso que agia conformemente à própria vaidade. FHC é menos um vaidoso do que um sedutor: pavoneia-se, com a glote grugulejante e o sorriso irregular, como se não tivesse um espelho diante de si, como se fosse tão confiante a respeito de si próprio que nem de espelho precisasse. É a luta do pavão Collor contra o peru FHC.
Nesse sentido, a frase de Sergio Motta é histórica e importantíssima. Atribui a FHC os dotes de um "saco preto", de uma coragem fabulosa, enquanto que Collor só tinha a si próprio como avalista de suas machezas.
Vários aspectos a comentar. Primeiro: a frase é falsa. FHC pode ser hábil, inteligente, brilhante -mas não há sinal de coragem em sua atuação política. Ele próprio se apresenta como senhor do pragmatismo e da lucidez; não é nenhum dom Quixote, é o homem dos consensos e balanços, capaz de provar por A mais B o acerto de sua aliança com ACM e com Sarney.
Em segundo lugar, não está interessado em demonstrações de machismo. Ou melhor, está; engrossa a voz repentinamente, quando alguma pergunta incômoda lhe é formulada; faz-se de decidido, de convicto, de coerente, quando tudo mostra sua incoerência, seu oportunismo, sua estreiteza como político. Ah, mas não digam isso dele! Ele é o campeão da Política com P maiúsculo! É o Homem que soube transigir no detalhe para vencer no Atacado!
Toda crítica a Fernando Henrique parece, desse modo, injusta e parcial. Se bilhões e bilhões de dólares são entregues ao sistema financeiro, tudo é visto como o sacrifício de um guerrilheiro nas matas da Bolívia. Ele, FHC, sabe que fez a opção correta.
E diz alegremente que está correto. Mais espantoso do que ouvir Sérgio Motta a respeito do "saco preto", foi ouvir FHC dizendo, no dia seguinte, que a fisiologia acabou no Brasil. Como? O acordo sobre a emenda da previdência foi pago a preço altíssimo a cada um dos congressistas que mudaram seu voto. O espetáculo foi mais pornográfico do que o dos cinco anos para Sarney.
Mas é como se Fernando Henrique passasse por cima de todas as acusações de sarneyzismo, de fisiologia, que eram feitas a Sarney. Nesse sentido, a frase de Sérgio Motta restitui a veracidade dos fatos. O ministro das Comunicações funciona como se fosse o "id", o poder inconsciente, do governo FHC.
Diz a verdade, ou seja, a de que toda grosseria, toda pornografia verbal, encontra abrigo nas ações do atual governo. E permite a FHC dizer mentiras inimagináveis, mesmo nos tempos do governo militar.
O governo militar tinha seus cínicos de plantão. Diziam mentiras, como se tudo fosse a mais pura verdade. Diziam-se democratas quando fechavam o Congresso, diziam-se "socialistas fabianos", como Delfim, quando bispavam reajustes salariais. Era o cinismo em estado de inocência. Suas frases eram recebidas como provocação pura e simples, como escárnio vitorioso no rosto de homens derrotados.
Chegamos, entretanto, a outro tipo de cinismo, que nem mesmo é descarado. FHC dizendo que a época da fisiologia passou. Isso nem é mais uma frase cínica: é a mentira de quem se julga dono da verdade, de quem se embriagou pelo puro e simples exercício da mentira. FHC proclama essa barbaridade como se estivesse convencido do fato- coisa que os grandes cínicos do regime militar não ousavam fazer. Sabiam-se mentirosos, gozando com isso. O cinismo atual assume como ponto de honra as mentiras que pronuncia.
Sergio Motta rebaixa toda a fraseologia de FHC, faz com que desça aos níveis de uma mentira pornô, porque se sente culpado diante da farsa generalizada. Mente por complexo de culpa. Espoja-se vitoriosamente na lama fisiológica, por que esta o alivia de escrúpulos morais longamente preservados durante os anos de perseguição.
Todos, no governo, tornaram-se piores do que eram antes, porque vêem no poder a indulgência eleitoral face aos anos que amargaram de exílio. O golpe militar desobrigou-os de qualquer preocupação moral. Dá a FHC um monopólio da verdade científica. "La vérité, cést moi". Dizem o que Delfim e Maluf não tinham coragem de dizer, apimentando o que dizem com um pornocratismo à Roberto Campos, recoberto apenas pelo charme de esquerda que ainda possuem nos meios de comunicação.
Valem-se da "veracidade" da esquerda, da credibilidade que ainda possuem diante dos homens de bem, para afirmar como opção heróica e valorosa o pacto que fizeram com o diabo. Confiam, mais do que qualquer sicofanta do regime militar, na imbecilidade do povo. Confiam mais, porque são mais inteligentes. Tornam-se mais pornográficos, porque imaginam pagar assim pela baixaria real em que estão metidos.

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