São Paulo, quinta-feira, 4 de abril de 1996
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Reféns foram utilizados como cobaias

WILLIAM FRANÇA
ENVIADO ESPECIAL A APARECIDA DE GOIÂNIA

Ontem às 18h25, quando os 43 presos rebelados deixaram o Cepaigo (Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás) com seis reféns a bordo de oito carros, completaram-se 151 horas e 25 minutos da quarta e maior rebelião desde a inauguração do presídio, em 1962.
Assustados, a maioria dos reféns libertados ao longo dos seis dias deixou Goiânia. Dos que ficaram, poucos têm disposição para relembrar os momentos de tensão.
A seguir, os principais fatos, desde os preparativos da rebelião até a libertação dos reféns.
Os preparativos
Os presos souberam na segunda-feira, dia 25, que o presidente do Tribunal de Justiça de Goiás, Homero Sabino, visitaria o presídio na quinta, junto com um grupo de juízes. Os presos da ala B -de regime fechado que cumprem penas por homicídio e assalto- decidiram tentar um motim. Para isso, prepararam "chuchos" (pedaços de madeira apontados). Eles já tinham um revólver.
A visita
O grupo de autoridades chegou às 9h. Deveriam fazer uma visita na ala administrativa, depois na enfermaria, padaria, oficinas e, por fim, no pavilhão principal, onde existem 288 celas. Almoçariam no presídio e à tarde ouviriam as queixas dos presos. Apenas a primeira parte foi cumprida. Às 11h, quando o grupo estava na área industrial, um carcereiro liberou os presos da ala B para o pátio. Dez deles renderam os demais carcereiros do pavilhão B.
A tomada dos reféns
"Chulé" -o nome conhecido do assaltante Oley (sem sobrenome)- estava com um revólver. Com isso, conseguiu encostar as autoridades em um muro. Surpresos, não reagiram. Todo o presídio era guardado por 17 agentes penitenciários, armados com cacetetes. Enquanto alguns rebelados tomavam conta dos reféns -cerca de 40-, outros começaram a estourar os cadeados das celas, libertando mais detentos.
Em poucos minutos, cerca de 600 presos que estavam no Cepaigo foram soltos -entre eles, o sequestrador e assaltante Leonardo Pareja. Os reféns foram isolados em um canto do presídio.
A destruição
Logo em seguida, os rebelados começaram a destruição. Chegaram à ala administrativa e queimaram os arquivos com as fichas criminais. Saquearam a cozinha. Invadiram as oficinas de couro e madeira, transformando as ferramentas em armas. Usaram cola para se drogar.
A chegada da polícia
Com telefones celulares, alguns dos reféns conseguiram acionar a polícia. Às 14h, na quinta-feira, a primeira refém furou o cerco dos sequestradores. O helicóptero da PM resgatou 11 pessoas.
Os reféns foram levados para a ala de segurança máxima. Pareja, que se integrou ao grupo, foi indicado pelo presidente do Tribunal de Justiça de Goiás, Homero Sabino, para que liderasse os presos. Os detentos aceitaram. No fim da tarde, uma equipe da TV Anhanguera, que era refém, conseguiu fugir. Alguns reféns que passavam mal foram soltos.
O temor inicial
Os reféns e os amotinados temiam que a polícia invadisse o presídio e que houvesse uma chacina. Para evitar isso, cerca de cinco reféns foram colocados em cada uma das seis celas, junto com mais um grupo de 16 presos. A cela tem oito metros quadrados (4m x 2m). Em cada uma, havia ainda um botijão de gás industrial, retirado da cozinha e amarrado com latas de solvente químico.
O diretor do Cepaigo, Nicola Limongi Filho, foi retirado da cela várias vezes. Foi xingado, levou um soco no olho e recebeu um golpe de "chucho" no pescoço que não chegou a cortar. Em cada cela, os reféns se revezavam em camas de concreto. Só beberam água.
O líder Pareja
Ainda à noite, Leonardo Pareja assumiu a liderança do motim. Todos os reféns afirmaram que ele conseguia acalmar os cerca de 60 detentos mais exaltados, que se dividiam em grupos de quatro. Pareja unificou o comando. Sobraram 43 presos no motim.
O primeiro dia
Pareja conseguiu acalmar os ânimos. Os reféns recebiam apenas água. O banheiro era o mesmo dos presos, mas não havia higienização. As mulheres -quatro- foram transferidas para uma mesma cela e receberam um lençol, com o qual improvisaram uma cortina. À noite, os reféns dormiram amontoados. Havia mosquitos e pernilongos. Para se protegerem, usavam roupas sujas.
O negociador
Pareja começou a negociar com uma comissão formada pelo governo e policiais federais. Ele ligou para imprensa e deu entrevistas dizendo que a polícia estava negando água e comida aos reféns. Ao mesmo tempo, Pareja criou comissões entre os presos: um grupo cuidava da comida, outro da água, outro da limpeza. Exigiu dos presos que nenhum refém fosse tocado a partir daquele momento.
O segundo dia
Os presos começaram a servir os reféns. Levaram roupas, remédios e frutas trazidos por parentes. Para evitar possíveis envenenamentos, os presos só comiam ou bebiam algo que fosse primeiro provado pelos reféns. Alguns tiveram diarréia, dores de cabeça e de garganta.
Houve novos momentos de tensão quando a polícia começou a retirar os presos não-amotinados para a ala feminina. Os amotinados temiam que a polícia esvaziasse o presídio para invadi-lo.
A rotina
Enquanto era a feita a troca de reféns por carros, as vítimas começaram a ficar mais próximos dos amotinados. Os presos acordavam os reféns às 6h e serviam um café puro. Havia apenas uma escova de dentes para todos. Pela manhã, havia banho de sol. Depois, no almoço, preparavam arroz, feijão, macarrão e ovo frito. Os detentos são unânimes em afirmar que a comida era horrível.
À tarde, todos ficavam nas celas. Em vários momentos tinham direito a assistir TV e ouvir rádio -quando a comissão dizia algo que os contrariava, Pareja fazia chegar à imprensa a sua versão. Todos acompanhavam os principais telejornais, à noite.
As exigências
Pareja discutia com os líderes do movimento -"Carioca", "Eduardinho" e "Chulé"- as exigências para a fuga. Em vários momentos, consultava alguns dos reféns. Eles diziam que as exigências "eram pesadas". Diante da situação, Pareja refez a lista diversas vezes, para desespero da PF. Enquanto isso, aproveitava horas de folga para se exibir à imprensa tocando violão, fazendo cooper, jogando bola e tomando banho de sol.
A troca de reféns
Pareja estabeleceu o cronograma de liberação de reféns. No segundo dia, trocou quatro caixas de água mineral por três reféns. Depois, trocou outro por uma entrevista coletiva. No quarto dia, trocou dois carros por quatro reféns. Depois estabeleceu que, para cada carro e grupo de armas recebido, dois reféns seriam liberados.
A vistoria
A Folha teve acesso a uma fita gravada por um policial que demonstra como foi feita a vistoria dos veículos entregues para a fuga. Pareja caminhava sozinho até um portão interno. Lá, atrás de um portão, estava o carro com a chave na ignição. Pareja passava o carro para a área interna e o levava a um grupo de pelo menos dez detentos. Enquanto isso, os dois reféns que aguardavam na porta de um dos pavilhões eram liberados e seguiam, sozinhos e lentamente, até o mesmo portão. Os detentos vistoriavam tudo no carro -motor, combustível, pneus e lataria. Desmontavam bancos e parte do painel em busca de sensores eletrônicos. As armas também eram checadas: os presos atiravam duas ou três vezes para checar a munição. A cena se repetiu oito vezes.
A fuga
Antes de fugir, Pareja estabeleceu uma nova programação. Disse, numa entrevista coletiva, que fugiria a partir das 21h com oito reféns. Saiu às 18h25 ao volante de num Omega preto acenando para a imprensa. Seis reféns foram distribuídos em oito carros que estavam com as janelas vedadas com jornais. A final da entrevista, Pareja prometeu voltar ao presídio para cumprir sua pena, de nove anos e meio por assaltos.

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